segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Ninguém é indispensável


Acreditar que ninguém é indispensável é um ato de amor. Não sei se Lord Byron concordaria com isso porém, em caso negativo, eu lhe contaria um segredo: mesmo depois de ele morrer, o mundo não parou de girar.

Se, pra cada morte de um ser humano, outro se matasse, a população mundial não teria atingido as cifras a que chegou. E, ainda que o mundo não seja lá o lugar mais tranquilo e feliz, com certeza seria, hoje, mais sombrio e melancólico, nessas “circunstâncias suicidas”. O fato é que não é assim, a vida não é assim, pois os dias dos que ficam continuam nascendo e se pondo, ainda quando os outros se vão.

E isso vale não só pra morte do corpo, mas pra dos sentimentos, da memória, pra quando alguém parte, sai de casa, viaja pra voltar ninguém sabe quando. E os que ficam? Bom, esses, no último momento, quando em vez de obstarem a partida do outro, apenas o abraçam e beijam e desejam boa viagem, esses demonstram aí todo o seu amor.

Não há amor sem liberdade. E dizer isso não torna este texto uma cartilha pró-relacionamentos abertos, mesmo porque decidir relacionar-se ou não com alguém sem as amarras da fidelidade é um exercício, no mínimo, da liberdade de pactuar. A liberdade numa relação conjugal é bem mais ampla que o simples conceito de fidelidade. É reconhecer em quem se ama um inteiro, uma pessoa, linda exatamente por ser completa. Quem quer uma “metade” de laranja pra se completar deve começar procurando-a numa sessão de psicoterapia, pois nenhuma relação que não entre “inteiros” pode ser saudável.

Ser menos carente, tornar-se menos dependente do outro é escolher amá-lo. Reconhece-lo como ser humano completo e, nessa completude, tão encantador a ponto de nos fazer apaixonar, é deseja-lo feliz. E quando fazemos isso, só quando queremos a felicidade de alguém é que podemos iniciar a felicidade conjunta, conjugal ou não.

Prender o outro, fazer dele sua posse, portanto, faz tão pouco sentido quanto querer estar com ele sem que ele também o deseje. Ao contrário, aceitar a possibilidade sempre presente da partida, de que ele nos deixe é desejar o seu bem, posto estarmos escolhendo a sua felicidade, pois permanecemos juntos acima de tudo porque a gente tem vontade e quer um ao outro e assim somos felizes; além de ser ato de amor próprio, porque afrente de qualquer vontade alheia, colocamos o nosso desejo de sorrir e reconhecemos que, pra isso, melhor estar sozinho que com quem não nos queira bem.

Pra quem, enfim, livra-se do peso de se preocupar com a possível partida, com a possibilidade do fim, o dia costuma amanhecer mais claro. Não por maior incidência dos raios solares, mas pelo sentimento que de repente surge de ser a vida boa agora, neste instante, bem quando devemos aproveitá-la, pois o amanhã importa tão pouco quanto tudo aquilo que não nos cabe conhecer. Mais importante do que prever o futuro torna-se viver o presente. Antes de pensar na partida, aproveitar o agora, quando estamos juntos e felizes. É a leveza do verdadeiro afeto, que não demanda nomes, assinaturas ou instituições pra existir. É a tranquilidade de quem está próximo porque quer e sabe ser a mesma coisa com os que o cercam. É a vontade de ter prazer despida de receios, em meio a sorrisos, amigos e conversas fiadas, pequenos ou grandes prazeres ao longo de uma longa noite que pouco importa quando vai terminar, mais importa é que já teve início.

Se amanhã a gente ainda pode amar, hoje faço hora extra no trabalho. Mas se tudo sempre pode acabar em despedida, melhor comprar-lhe logo aquele buquê de rosas pra ver abrir-se seu sorriso lindo mais uma vez. Melhor viver agora, antes que seja tarde.

Vida

Queria que a vida fosse pra além de uma palavra. Mais que um conceito frio apenas. E mais que tão somente sonho e imaginação fértil no meio de uma aula chata. Queria que a vida cruzasse a fronteira da fantasia com a realidade, da linguagem com os fatos: devo admitir que acho muito mais gostoso beber do que simplesmente dizer “café”.

Não quero a vida emoldurada na parede numa foto bonita de cartão postal. Claro, a gente sempre pode pegar um avião e ir viver ao vivo a paisagem. Mas nem todo mundo tem condições de se aventurar até os Alpes Suíços. E desde quando isso é a tal da vida, voar por meio mundo pra chegar numas montanhas bonitinhas? Não quero uma vida bela ou feia, prefiro-a viva. Viva de tal forma que quatro letras jamais serão capazes de conceituar.

Podia até lançar aqui um manifesto pela exclusão da palavra “vida” do dicionário brasileiro. A menina, em vez de viver, sorri. O rapaz, tadinho, chora. A planta segue o sol, o cachorro corre rápido, o peixe nada, nada e não sai da água. O pássaro voa, o avião também, mas só porque tem um piloto que o comanda. A criança brinca, a mãe trabalha, o pai cozinha (família moderna, hein?) e à noite os dois fazem mais filhinhos – mas disso não convém entrar em detalhes.

Ao contrário do que se diz, as estrelas não nascem; apenas brilham bonitas no céu. Às estrelas, não tem avião que nos leve. Acho que pra elas, então, se pode abrir uma exceção: apesar de estarem mais longe que as montanhas da Suíça, estamos o mais perto delas a que se pode chegar. Pois a distância entre um par de olhos e o brilho de uma estrela se mede menos em anos-luz, mais nas emoções por ela inspiradas.

E se ninguém “vive”, a gente não precisaria mais “morrer”. Melhor seria apenas deixar de sentir, falar, correr, sorrir, comer, fazer amor etc. Com certeza o processo lingüístico e conceitual entre sair do “uga-uga” primitivo e chegar à “vida” não foi simples ou curto. E, um palpite que me veio à cabeça: talvez a gente só tenha inventado o termo “vida” quando se deu conta de que o nosso dia-a-dia agradável – ou nem tanto! – um dia acabava, terminava assim de repente. Parece até que a vida nos brotou da morte. Pois aqui eu digo sem medo: não é, então, essa a “vida” que eu quero.

Uma vida menos morte, menos conceito e mais acontecimento. Uma vida de tato e sensações, de experimentação inominada de tudo aquilo que se possa ver, ouvir, provar, vida que tanto faça se cheiro de flor ou de esgoto, desde que, mais que palavra e descrição, seja cheiro de verdade.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Sal

Um grande amigo, certa vez, me disse pra escrever uma história sobre o fogão e o micro-ondas. Na verdade, sobre o conflito de gerações: a sopa que, por tanto tempo, saiu do forno mais quente nas bordas que no meio, agora, no micro-ondas, esquenta em sentido inverso, de dentro pra fora.

Ainda não escrevi o texto, mas hoje à tarde, ao escolher a cafeteira clássica, aquela do fogão, em detrimento do micro-ondas pra esquentar água pro café, lembrei do que ele me havia dito. Sorri e pensei prontamente em escrever, mas desisti, ao menos por enquanto, pois parece que a sugestão dele faz da crônica tão minha quanto sua. E ele, neste momento, infelizmente ele não poderia ler a crônica nossa.

Amanhã ou depois vai ser diferente: hoje ele já respira sem máquinas, depois vai deixar o coma induzido, sem mais sedativos ou qualquer coisa que não lhe permita acordar, mas daí vai levar um tempo até ir pro quarto, começar a ler e, enfim, voltar a sorrir – espero que não necessariamente nessa ordem. E isso espero por desejar que não leve muito tempo até nós podermos enxergar novamente seu sorriso, pois pensando de maneira bem egoísta: a vida de nenhum de nós não é a mesma sem um sorriso daqueles aparecendo de repente!

Mas isso consola, essa história de amanhã ser sempre diferente. Ontem o foi de hoje, por que amanhã também não será? Afinal, foi ele mesmo, o meu grande amigo, quem me disse: antes, a sopa quente nas bordas; hoje, fumaçando pelo centro. A vida é assim, feita de ontem e hoje e, bem desejamos, amanhã. Não que eu queira viver de passado ou futuro, de memória ou expectativa. Não que eu negue a maior verdade conhecida – de que a vida é monopólio do presente. Ainda assim, porém, quando a vida vacila sobre uma cama de hospital, a gente termina por poder pouco, quase nada além de esperar.

É quando o tempo parece mesmo haver parado, assim como o mundo deixado de girar. Por alguns instantes, alguns dias... O tempo exato eu não sei, mas tenho crescentes esperanças de que, dentro em breve, a autoridade de um jaleco branco lhe conceda alta e a vida, desde antes, já o tenha feito voltar a sorrir. Nesse dia, sim, no dia em que eu lhe enxergar novamente o sorriso, garanto que a vida volta aos seus mais pateticamente belos momentos do singelo, complexo e eterno presente. Ele, meu amigo, meu irmão, sabe bem disso e deseja a vida como ninguém!

Até lá, estamos no aguardo, esperamos, rogamos, torcemos. Força, Sal!

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Enquanto isso, na Cidade Proibida...

Na Cidade Proibida, o Imperador Xi-cezár Peluzzô chamou os amiguinhos pra brincar de rei. Xan-Tofólli, Xun-Mendêz e Xong-Mellô desenrolaram um pergaminho. Em cima da mesa, agora, se estendia um mapa delimitando cada região do império chinês. Pegaram uns dados, umas pecinhas e começaram a jogar. “3 contra 2 na Manchúria”, “2 contra 1 de Taiwan pra Xangai”. Lá pras tantas, porém, Huang-Barbosa, Hiayres-Britto e Hawan-Dovsky, três dos poucos que haviam tido permissão e curiosidade de pisarem fora das Muralhas do Dragão começaram a temer pelos barulhos que vinham da Pequim em pavorosa. Hicarmin-Lucí e Hellen-Graxie alertaram aos outros, mas Xinmarcau-Rélio riu e o imperador disse: “Eu sou o Deus, a lei sou eu”.

Havia anos que era assim: lá dentro o imperador brincava, lá fora o japonês mandava.

Até que, um belo dia, Mao apareceu e convenceu um povo cansado de ser mudo a invadir a Cidade. Fizeram um estardalhaço, cortaram umas cabeças e acabaram com a festa de todo mundo.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Céu de estrela

Minha casa de pedra e eu, aqui, desejando aquele céu feito de estrela. Lá fora chove, as nuvens berrando brabas afogam tudo, do chão ao firmamento. Eu fecho a janela, pois mãe não me deixa sair. “Menino, olha a água! Menino, olha o frio! Menino, olha a gripe!”. Sento na cama e umas lágrimas escorrem: “Menino quer olhar estrela, mãe!”, mas mãe não entende...

A luz cai. Menino sozinho no quarto tem medo de escuro, mas mãe não gosta de ser perturbada à noite. Acendo uma vela. Sem luz da janela, o fogo brilha refletido nas lágrimas espalhadas pelo chão. Menino chora mais e mais. Mas pára e sorri ao perceber que o chão duro do seu quarto se transformou, agora, num céu bem bonito, cheinho de estrela.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Texto pelo casamento de Larinha e Vitor Hugo



Do amor ninguém foge. O amor ninguém inventa. A amar ninguém ensina, mas a gente aprende. De um jeito ou de outro, aprende. Claro, porque tanto o quanto sentimento, amor é escolha. Igual a tudo na vida, amor é sorte e é também vontade. Talvez a gente não ame sem que a vida nos permita, mas com certeza ninguém pode amar se ao amor não se abrir, não há quem ame sem se dispor a amar.

Na mais aleatória conjuntura de fatos e acontecimentos, a gente se encontra. Por uma série improvável de acasos, a gente se encanta e, às vezes contra a própria vontade, nos apaixonamos. O responsável pelo encontro pode ser um tropeço, uma gafe, até uma fossa, a frustração de um amor que passou. Há vezes em que o amor até parece um grande palhaço: gosta de brincar, fazer joguinhos, adora aparecer de repente num corredor de supermercado, numa sala de aula, na fila do banco ou esbarrar na gente andando no meio da rua. Na internet, na casa de amigos, na festa de aniversário da prima de 2º grau de cuja existência você nem sabia até uma semana atrás.

Pouco importa onde ou quando, o amor acontece. Sempre e pra todos e todas. E, daí, resta a escolha entre amar ou deixar de viver. Quando acaba um relacionamento, dói, a gente sofre e, se for grave, até diz que não querer – nunca mais! – amar. Mentira. Mais sofre quem mais amou e esse pode viver sem tudo, só não sem o amor. E quando vem a paixão, quando os sininhos tocam, quando o mundo fica mais bonito até sem nada haver mudado, quando o amor, enfim, começa, sempre parece que tudo pelo que passamos valeu à pena.

Por isso é bom dizer: acredite no amor. Até sem fé, até quando não puder acreditar na própria crença, não descreia do amor, porque amar sempre vale mais à pena do não acreditar. De tudo que há de grande e pequeno na vida, o que mais vale a pena é o amor.

Comemorar o encontro de pessoas que se amam faz, então, todo o sentido. Se bom na vida é amar, bom na vida é sorrir. A gente pode descrer de tudo, pode esquecer, não lembrar, deixar de saber. Ninguém conhece mesmo o sentido da vida. Mas uma certeza jamais deixa de estar presente, ainda que lá no fundo, mesmo escondia, até quando a procuramos sem encontrar ou negamos sua existência: mais que a certeza da morte, a gente tem convicção de que nasceu pra ser feliz.

Como, por que, quando encontramos a felicidade?, isso ninguém pode responder. Mas não há dúvidas de que nada rima mais com “felicidade” do que “amor”, do que “amar”. “Sinônimo de amor é amar”, canta Zé Ramalho. Amar, verbo, atitude, amar com vontade, com gana e desejo. Agir como quem não apenas espera a felicidade, mas a constrói, dia a dia, ao acordar num beijo a pessoa amada, ao dormir abraçados, ao ter certeza de que ninguém é feliz sem optar pelo amor. E o mais bonito é quando a gente pode olhar pro lado e perceber que até o amor pode ter nome e sobrenome e corpo e pelos e tantas qualidades quanto defeitos. Mas, e daí? De que tanto importam os tantos defeitos quando a gente continua a escolher o amor? De que importa todo o resto, se a gente se dispõe a amar?!

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Perdão




De nada adianta forçar: o perdão é como o amor, simplesmente acontece. Por isso, quem me magoou eu não perdôo, ou perdôo, tanto faz: desde que eu não lhe falte com respeito, ninguém tem nada com isso.

“Mas você deve perdoar, querido. Afinal, sem perdoar, ninguém se liberta”. Deixa eu ver se entendi: sem perdoar eu não alcanço a liberdade; logo, se eu não pretendo perdoar, preciso ser coagido à liberdade?! Quem nos diz ser “devido” amar, perdoar ou fazer qualquer dessas coisas cuja escolha não nos é facultada (não sei o seu, mas meu coração é bastante intransigente, o suficiente pra não pedir minha opinião: quando percebo, já estou perdidamente apaixonado), não faz muito diferente de uma superpotência mundial forçando uma população a tornar-se livre. Perguntemos aos ocupantes da casa branca: como se institui pelas armas um regime democrático? Eu mesmo respondo: da mesma maneira que um moralista querendo instituir, pela razão, o perdão no meu peito.

Perdoem-me os cristãos, mas eu não tenho que perdoar. “não tenho que”, do verbo “não ser obrigado a”. Ao contrário do que muitos preferem pensar, perdoar não é uma escolha – sobretudo não é simples! A gente até diz “eu te perdôo”. Mas tanto quanto uma mulher ciumenta esperneia a grande mentira de que jamais quer ver seu homem novamente (“aquele cafajeste! Nem pintado de ouro!”), nem sempre perdoamos quando afirmamos perdoar.

O perdão pode não ser um afeto, mas é dos afetos pelo menos uma consequência. Se é fato que a gente não “sente” ou “deixa de sentir” o perdão, também é verdade que ninguém perdoa com rancor, mágoa ou ressentimento. Claro que podemos fingir, jurar de pés juntos um perdão floreado, mas daí até perdoar de verdade existe uma estrada torta de diferenças. “Como” a gente chega a perdoar eu não sei; mas “quando”, é bem na hora em que esquecemos de ter raiva, quando a gente se dá conta, de repente, de que não mais nos importamos com o que tenha acontecido: mesmo sem poder lembrar em qual dia ou instante, descobrimos que, sim, como o mais natural dos eventos banais – e não mais que de repente! –, operou-se o tal milagre da transformação do rancor em desinteresse, talvez até mesmo em perdão.

domingo, 8 de agosto de 2010

É tempo!




O tempo é uma invenção de quem tem preguiça de viver. E a gente fala dele como se tivesse alguma autoridade. Por sinal, usamos o próprio tempo como argumento de autoridade:

“Quantos anos você tem mesmo? Ah, só? Relaxe, você ainda tem muito pra viver...”.

Tenho? Engraçado que, se por um acaso do destino (livrai-nos do mal, amém!), amanhã eu morrer, discursarão à cabeceira do meu caixão: “foi tão maduro, um homem íntegro, completo”. Do dia pra noite, amadurecido, quase santo. Quer dizer que é a morte quem nos faz amadurecer? Se for assim, quero ser criança eternamente!

Até parece que a vida é mesmo contada em tempo. Dentre os minutos, os únicos que realmente importam são os que precedem o fim do expediente de trabalho. Daí nossa ansiedade parece tão grande que deixa os ponteiros mais pesados, demorando tanto, quase que não giram mais. Fora esses minutos, porém, o que vale de verdade são os momentos bons. Bons não, únicos! Não precisam ser grandiosos no sentido clássico do termo, mas têm que ser dos maiores pra quem os vive. São os momentos eternos, tão incríveis que sempre existiram e pra sempre o farão, sem poderem ser compactados em molduras temporais: um beijo inesquecível, a primeira vez em que os dois se entreolharam, um casal desnudamente apaixonado abraçado frente a um espelho do motel pra que foram fugindo do mundo que os ficava azucrinando, uma caixinha encontrada no rodapé do seu banheiro guardando lembranças de uma criança que ali morou 40 anos antes (quem não entendeu o último exemplo assista a “O Fabuloso Destino de Amélie Poulin”). Momentos que não têm fim, por não terem início, porque nossa vida praticamente foi criada em função deles, porque precisávamos vivê-los. Não serão esquecidos, nem lembrados, apenas vividos na eternidade em que os homens e mulheres amam e, em razão disso, não precisam se limitar à ficção do tal “tempo”.

A última vez em que terminei um relacionamento, eu bêbado, conversando com um ser barrigudo, tão embriagado quanto e bastante mais velho, ele me disse: “olha a tua idade, você viveu tão pouco. Isso nem foi amor. Ainda tas longe de encontrar um amor de verdade, meu caro, bem longe”. Praquela barriga gorda, eu respondi: “se o amor presente não for o maior, o último, nem amor é”. Apesar de achar que eu devesse ter dito: “pior que eu é você, com toda essa idade, ainda não ter conhecido o amor”. Sim, porque alguém que fale o que saiu da boca dele, sabe tudo, menos o que é amar. Desde quando o destino nos apresenta o afeto a partir do tempo?! Ao nos criar, então, ele fala assim: “você é padrão, só com os 35; você, vai um pouquinho antes, 33, a idade de cristo; ah, você é um sortudo, com 22 já vai amar, ao contrário daquele pobre coitado... iiih, esse é só lá pros 49, mas não tem do que reclamar, pior é quem nunca vai encontrar o amor”.

Não posso falar com propriedade se a vida é uma intercessão de lágrimas num fundo de alegrias ou vice-versa. Não tenho certeza, mas acho que a zebra é branca com listras pretas, né? Pois bem, e quanto à vida: é feliz intercalada por momentos tristes, ou é toda de tristeza com algumas manchas de felicidade aparecendo pelo caminho?! Eu não tenho a resposta. E cada um acredita no que quiser. Mas tenho uma certeza: qualquer das duas opções, nenhuma é condicionada pelo tempo. Há vezes em que um dia é mais eterno que todo o resto. Às vezes, vivemos muito, mas em muito pouco tempo. Um amor de uma curta viagem inesquecível por toda a vida, mesmo quando acordamos dia-a-dia ao lado de outro alguém; ou uma pessoa que no espaço de um mês nos marque a vida até o momento da nossa morte...

Só posso esperar que cada vez mais os dias nos sejam assim, generosos, hoje tão ou mais eternos que o mais eterno dos outros dias.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

No bar com Ares e Apolo

‘Bom na vida é sonhar.’

‘Bom na vida é a vida!’

‘Sim, claro, e os sonhos não lhe são parte?’

‘Tão importantes quanto batata-frita. Estas, por exemplo, estão ótimas! Você devia provar.’

‘Eu devia emagrecer, isso sim!”

‘Deixa disso, irmão.”

‘Você diz isso porque até Afrodite caiu nos teus encantos.’

‘Ha-ha! Fazer o que se eu sou assim tão irresistível?!’

‘Tentar seguir seus passos!’

‘Ah, mas foi muito trabalho duro pra moldar estes músculos.’

‘Vejo bem quanto trabalho não é comer uma porção de batata-frita. Ha-ha!’

‘Se você largasse a harpa e viesse comigo à guerra não precisaria se preocupar com o que come!’

‘Sabes que sou mais dado aos versos.’

‘Então rogue a Zeus por um milagre, porque nada mais vai dar jeito nesse corpo mirrado.’

‘Calma, também não é assim...’

‘... Claro que é! Por sinal, sempre é: você é assim.’

‘O que você está insinuando?!’

‘Não é insinuação: você só sabe falar, nunca faz nada.’

‘O que faço é sonhar.’

‘Não é muito diferente falar de sonhar...’

‘Claro que é! Os sonhos é o que há de mais valioso.’

‘Sonhos não enchem barriga.’

‘Nem de barrigas cheias vive o espírito. Por que sempre que falo dos sonhos você vem com algum problema?!’

‘Porque assim é a realidade: fria, dura e impiedosa.’

‘Se de problemas a realidade vive, mas eu ainda posso sorrir – e é real meu sorriso – significa que existe alguma realidade boa.’

‘E daí?’

‘Como o que me faz sorrir são os sonhos, os sonhos são tão reais quanto qualquer realidade.’

‘Sonhos não constroem ou servem pra esquartejar. Bom é uma espada, uma lança, o corpo de uma bela mulher...’

‘... uma porção de batata frita!’

‘Ha-ha, pois é! E sonhos são apenas úteis quando têm algum propósito, como quando os inventamos pra enganar e conquistar uma mulher.’

‘Não gosto quando me falam da utilidade dos sonhos.’

‘Por que não? Não são úteis?’

‘Dizem que sim: “sem sonhos não se chega a lugar algum”.’

‘Fora ao desejarmos uma mulher, não precisamos dos sonhos pra ir a qualquer lugar...’

‘... porque já chegamos!’

‘... porque, sonhando, ficamos parados e jamais havemos de chegar.’

‘Quando chego ao sonho, já posso sorrir. Sonho, portanto vivo.’

‘Pois viva com os sonhos: eu prefiro minhas batatas!’

‘São todas suas, irmão. Ainda preciso emagrecer!’

quinta-feira, 10 de junho de 2010

No bar com Hera e Afrodite


‘Sabe de que eu to com vontade?!’

‘Não, o que?’

‘Um tira-gosto, um petisquinho’

‘Agora?’

‘Não, amanhã, depois do pôr-do-sol... claro que agora!’

‘Há-há! Muito irônico!’

‘Ok, ok, desculpa, é só...’

‘Sem desculpas! Você sempre faz isso.’

‘Só com quem eu gosto. Você, por exemplo!’

‘Humm, tá certo. Bem, em que tinhas pensado?’

‘Como assim em que?’

‘Pra comer, claro!’

‘Não sei. Bolinhos, talvez? Não tenho fome.’

‘Pra que comer sem fome?’

‘Desde quando só comemos com fome? Olhe ao redor.’

‘Mas quase ninguém está comendo.’

‘Mas quase todos estão bebendo. Por que, então, se não têm sede?’

‘Como nos vestimos sem frio.’

‘Como viajar com preguiça...’

‘... ou voltar sem vontade.’

‘Como o sexo.’

‘Como o casamento?... não!’

‘Claro que sim!’

‘Casar-se sem querer?’

‘Casar-se sem amar!’

‘Impossível!’

‘Impossível é amar um deus promíscuo como seu pai.’

‘Então por que casaram?’

‘Minha querida, das razões pro casamento a mais comum é o medo; a última o amor.’

‘E no meio termo, o que há?’

‘Filhos, educação, tradição, dinheiro... mas, sobretudo, medo.’

‘Sobretudo amar!’

‘Amor é pra quem quer sorrir: eu precisava era me casar.’

‘E ser infeliz?’

‘E estar contente por ter um marido. Você devia fazer o mesmo.’

‘Santa paciência: tenho mais o que fazer do que me preocupar com marido.’

‘O que, por exemplo?’

‘Por exemplo, tenho muito ainda o que amar.’

‘Pra depois se importar com teu marido?’

‘Pra depois continuar amando.’

‘Criança tola, não devia desprezar o homem escolhido por teu pai. Uma dia vais ver como estou certa.’

‘Nesse dia, eu me preocupo. Até lá, porém, preciso ir que o Ares me espera.’

‘Ares? E Hefesto?’

‘Tá lá em casa.’

‘Ah, deixaste o marido em casa. E teu meio-irmão, pra que te espera?’

‘Pra amar. Algo que você talvez desconheça.’

‘Garotinha insolente você, viu? Não vai deixar nem o dinheiro da conta?’

‘Mas não comemos nada.’

‘Mas eu estou com fome.’

‘Você come, você paga.’

‘E prometi ao seu pai levar os bolinhos de queijo que ele adora.’

‘Como ter certeza? Me dá uma garantia.’

‘Não confia em mim?’

‘Se me der uma garantia, eu confio.’

‘Ah, então vá de uma vez! Mas seu pai vai ficar sabendo desses seus encontros furtivos.’

‘Ele já sabe; mas acho que também tem mais com o que se preocupar. Como você, por sinal, deveria fazer.’

‘Blá, blá, blá: já sei, já sei, deveria amar, não é?’

‘Se a carapuça servir... Agora preciso ir. Até logo, querida.’

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Brasil, um país de tolos


Foi assustador quando meu senhor, o coronel, abriu a porta e me mandou sair. Não ele, mas a luz contínua e forte me aterrorizou. Coloquei a cabeça entre os joelhos e respondi que não iria. Ouvi seus passos se aproximando e gritei que tinha medo. Quando chegou bem perto, porém, caiu no chão ofegante. Encostei-o na parede com toda a devoção, tomei-lhe a receita da mão e corri à farmácia pra comprar o remédio.

Não contei a ninguém, nem desse episódio ou de todo o período em que ele cuidou de mim. Me mantive calada e fiel a meu guardião, o senhor que me protegia. Ensinou-me a ler, a escrever e até ser mulher, somente com ele eu fui. Me batia, mas no fundo desejava apenas que eu me comportasse, queria me mostrar como viver corretamente e com decência e, por isso, afirmava ter medo de me deixar sair do quarto. Ele sofria, mas precisava me manter trancada. No começo até questionei, mas depois o coronel mostrou como os homens podem ser crueis e como é perigoso o mundo. Até a luz do dia parecia perigosa. Por isso tive medo quando ele abriu a porta àquela manhã.

Depois de eu o salvar, ele tem me dado permissão pra sair mais e mais. Na verdade, hoje, já quase permissão não preciso pedir, só de vez em quando ouço gemer a cadeira de balanço no canto da sala e ele fala com a voz fraca, mas ainda grave e naquela posição altiva de cabeça baixa e saliva escorrendo pelo canto da boca: “comporte-se e volte logo, senão vai ser pior pra você”.

Um dia, me surpreendi com minha própria imagem refletida no vidro de uma loja (que descobri se chamar “vitrine”). Não que eu me desconhecesse, mas o único espelho do meu quarto era um pequeno e quebrado, em que mal se enxerga um rosto inteiro. Foi inevitável a comparação entre aquele corpo de mulher e a silhueta dele, velha e curvada. Ainda assim, lembrá-lo sentado no canto da sala me deu um calafrio tamanho que me fez correr pra casa.

Não sei o que aconteceria comigo aqui, na rua. O que seria de mim sem ele?! Nada. Nada sei e, o pouco que conheço foi através dele. Devo muito ao coronel, ajudou-me tanto. Hoje, percebo que talvez não fosse necessária aquela corda com ponta de ferro ou as vezes em que deixava meu rosto cheio de marcas roxas, porém era sempre certo que, logo depois, a porta se abria novamente e ele entrava no quarto com uma bolsa de gelo e começava a me fazer carinho. Às vezes, pedia pra eu tirar a roupa. Disso eu não gostava, mas se eu não o fizesse, levantava a mão pra mim e eu já estava quase nua. Tinha muito medo dele... e, pra ser sincera, continuo tendo.

Há já duas horas estou fora de casa. Nunca passei tanto tempo assim longe da proteção dele. Semana passada, vi na TV o depoimento de uma mulher que disse haver sido encarcerada por 23 anos pelo pai. Por isso estou aqui: no meu caso, foram apenas 21. Respiro fundo pra criar coragem. Sei que o que ele fez foi muito errado e, como disse a mulher na TV, deve ser responsabilizado pelos seus atos. Subo as escadas, degrau por degrau, morrendo de medo e de olhos fechados pra não enxergar ninguém que passa pelo meu lado. Abro-os quando já estou em frente à porta. Ao lado, numa placa de metal espelhado, está escrito "polícia", mas eu quase nem leio, apenas observo o reflexo do meu rosto que, de repente, se transforma no rosto do coronel. Assustada, tropeço pra trás e quase rolo escada abaixo.

Chego em casa ofegante. Com a bengala, o coronel passa da sala pro quarto. Não sei exatamente se percebeu meu desconserto, porém, antes de virar no corredor, atirou o canto do olho pra cima de mim e disse: “cuidado, menina. Cuidado”.

Corro pro quarto, apago a luz e meto a cabeça entre os joelhos. “Tudo bem, tudo bem” eu repito sem saber se acredito “agora está tudo bem; pra que, então, tentar mudar se o pior já passou?!”. Quem sabe outro dia...

dedicado às/aos torturados/as nos cárceres da ditadura militar brasileira, dos/as poucos/as corajosos/as numa sociedade covarde o suficiente pra fingir esquecer seu passado em vez de fechar-lhe as feridas.


quarta-feira, 19 de maio de 2010

Prece ao destino


Ajuda-me, excelência do tempo,

da poeira,

do asfalto,

do futuro e passado.

Perdoa-me, reverendo esperado,

pai dos que nada sabem,

guia dos que não querem saber.

Tem piedade, Senhor do acaso,

pois sem ti serei nada,

uma vida

de apenas pegadas,

angústia

e desejo

em solidão.

Sem ti,

sou o medo que desconhece,

o silêncio do espanto,

a danação do pecador.

Sem ti,

apenas o que foi;

mas nada foi,

somente é,

talvez será,

e a vida só me cabe

em igual medida

que a ti o acaso.

Sem ti

mãos atadas,

pois, se nem de mim nada sei,

sem ti

dize-me

o que seria

dos caminhos alheios

que as linhas de minha mão

hão de cruzar.

terça-feira, 18 de maio de 2010

No bar com Hades e Apolo


tsssss

‘Cerveja gelada, tem coisa melhor?’

‘Claro que há: cerveja alemã.’

‘E o que tem a ver? Não se pode gelar a alemã?’

‘Loira gelada? Hum, adoro!’

‘Morena quente, então...’

‘... nem se fala!’

‘Que tal uma agora?’

‘Loira ou morena?’

‘Ou as duas.’

‘Você sempre confundindo as coisas!’

‘E você dizendo que preto não é branco!’

‘Infinito e restrito são bastante distintos!’

‘Terra e mar, por sua vez, onde começam ou terminam?!’

‘Presente e ausente!’

‘Passado e futuro!’

‘Vivos e mortos!’

‘Dia, noite e fim de tarde!’

‘...’

‘Olimpo e inferno: você é dos 12 Deuses, Hades, mas onde habitas?!’

‘Ok, minha tarefa é claramente mais difícil.’

‘Provar o errado costuma ser mais difícil.’

‘Aham! Olha aí: certo e errado não se confundem!’

‘Choro e riso, porém, sim.’

‘Não, assim é apelação. Chora-se por dor, por perda.’

‘E pelo que se sorri?’

‘Pelo que seja oposto a dor: alegria, felicidade.’

‘Alegria e felicidade é que não são a mesma coisa.’

‘Não?’

‘Até quem não está contente e chora pode ser feliz:’

‘a mãe no parto,’

‘a criança ao nascer,’

‘um casal saudoso.’

‘Desde que é mundo o mundo, existem as oposições...’

‘... e desde que os homens surgiram, as contradições.’

‘Um brinde a eles.’

‘Saúde!’

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Como diz o poeta



Te quero sem querer,

mas ainda te quero

e ainda mais por te temer.


É que em ti tudo eu receio:

sobretudo que me faltes,

que o medo me convença

ser melhor te deixar

mesmo sem deixar de te amar.


Afinal, amor equivocado

não é aquele que duvida,

mas o que diz “não te amo”

quando sabe amar.


Preferir o medo a se apaixonar...

Não, não, isso não é viver:

o medo é a consciência batendo à porta;

amar, a liberdade do espírito,

tudo o que deseja o coração.


Eu mesmo,

temo quando estou só

e, como amor e solidão

não costumam se dar,

sozinho tenho apenas medo

e é junto a ti que aprendo

o que é gostar.


E, como diz o poeta,

apaixonar-se sempre vem

de cá com seus riscos,

pois mesmo unidos

ainda podemos errar:


assim, quando tua mãe

nos recomendar cuidado,

lhe digamos pra não se preocupar:

“temos juízo, mamãe,

e é por isso que ao amar

nunca estamos sozinhos,

só de mãos dadas.”

sábado, 10 de abril de 2010

A gente não sabe mais ser feliz

A gente não sabe mais ser feliz. Ou até saiba mas tem vergonha ou falta a vontade, sei lá. Mais parece que, com tanto relógio e ponto a ser batido, desaprendemos como fazer pra sorrir, até chegarmos a... isso: temer o próprio sorriso quando temos vontade de ser feliz! Claro que sempre virão os niilistas descrentes fanáticos com aquele discurso pronto cheios de palavras de ordem: “mas nós nunca fomos felizes”. É verdade, os que falarem isso nunca o foram – não têm imaginação suficiente pra alcançar a felicidade. Pois bem, em homenagem a eles sejamos didáticos: pra que saber se já houve um tempo em que fomos realmente felizes? Se for tão importante assim, criemos uma abstração pra ilustrar a felicidade, como fez uma cambada de teórico na história da humanidade. De fato importante é a irrefutável certeza de que cada homem e mulher nasceu com somente uma razão: a de ser feliz na vida.

Se não fosse dessa maneira, eu diria que os “céus” ou a “natureza” (de acordo com a crença do freguês) seriam extremamente cruéis e injustos. Nascemos, sim, destinados à felicidade, por isso nos foi dado um coração. Falo do coração dos amantes, não o dos médicos (às vezes, tenho dúvidas se médicos e médicas sabem o que é um coração pra amar...). Mas o Criador, cheio de peso na consciência, não quis ser injusto com o resto da criação por dar ao ser humano tamanho privilégio assim, de mão beijada, e resolveu fazer de nós também conscientes. No Gênesis chamam a tal consciência de “maçã”, mas podia ser pêra, banana ou melancia, tanto faz. O importante é que, conscientes de nós e do mundo, passamos a nos entreter e distrair e perder tempo na tentativa de entender tudo... e, enquanto tentamos entender, deixamos de conhecer: esquecemo-nos de viver! Deus, contudo, na sua eterna misericórdia, desde o primeiro dia (lá na macieira) vem tentando nos fazer perceber que há somente uma coisa a se entender na vida: que nada precisamos entender a fim de ser feliz, apenas devemos ouvir o que diz o coração.

Nossa, tão clichê de se dizer isso, não?! Porém, antes me chamarem de brega que mentiroso; sim, porque clichê pode até ser, mas essa é uma das maiores verdades que existem. E, sinceramente, acho que somente a classificamos como clichê por não conseguirmos alcançá-la. O nível de desenvolvimento técnico a que chegou a humanidade é impressionante. Desenvolvemos os reatores – e lá vêm as bombas. Criamos a internet – e desconhecemos a privacidade. Curamos um grave câncer – mas só de quem possa pagar. Triplicamos a produtividade agrícola – a fim de que as galinhas tenham uma alimentação saudável e balanceada... e as pessoas ainda insistem em morrer de fome! É, nosso desenvolvimento tecnológico é impressionante; pena que o maior produto de noites mal dormidas num laboratório seja filhos neuróticos e amores frustrados: perguntem ao Joãozinho, filho de 2 anos da Profa. Dra. Isabel Fontana – renomada biogeneticista – de que interessa a ele o resultado de uma grande pesquisa de sua mãe com um gordo financiamento. Provavelmente ele não vai responder: desenvolveu uma timidez quase patológica há alguns meses. E, apesar de sua mãe não o saber: foi por carência, por sentir falta dela. É verdade – claro! – que a vida de Joãozinho deve superar em muitos anos a de seus avós e grande parte disso é responsabilidade do desenvolvimento técnico trazido pelo esforço e pelas noites de cientistas e pesquisadores, como a Profa. Dra. Isabel Fontana, dolorosamente afastados dos filhos. Mas, droga: esqueci de lhe perguntar se prefere passar tantos anos sozinho ou escolhe viver bem menos, tendo sua mãe toda noite colocando-o pra dormir. Bom, não sei dele, mas eu gosto tanto do carinho de mainha...!

Pelo menos quando se trata de equações, a gente sabe que existe um resultado certo – e todos os outros estão errados. Pensar é fácil, difícil é amar. Ou, no mínimo, permitir-se amar e ser feliz. Se é culpa cristã, preguiça ou qualquer outro motivo, não sei, mas com certeza a gente desaprendeu como fazer pra ser feliz. E bem por isso, no momento em que encontramos a felicidade, ficamos sem chão e sem saber como agir, o que fazer, onde meter as mãos. Não: ser feliz numa sociedade de técnicos frustrados dá medo! Melhor mesmo esquecer a tal da felicidade. Ok, esquecer completamente não, mas nada além do efeito de um baseado sexta-feira a noite ou uma rapidinha no sábado. Acima disso, felicidade só dá medo! Melhor que se deixar levar por ela, é ficar onde estamos, tratar com o que já conhecemos e que, bom ou ruim, nos é habitual (e, por essa razão, não assusta como assusta a possibilidade de ser feliz): numa sociedade de técnicos frustrados que esqueceram de sorrir e amar, “medo” é o nome desse lugar onde estamos nós.

O problema maior surge quando até quem se dispõe à felicidade, quem afirma pra si “sim, eu posso amar!” passa a ter medo de sorrir. Não que o medo já não existisse, não é isso: temer nos é tão inerente e instintivo quanto a necessidade por água, comida e amor. O problema é o egocentrismo desse amor: é característico dele não saber conviver com nenhum outro sentimento. É ele e pronto e, se algum outro, em qualquer momento, torna-se maior e toma-lhe a frente, já vem ele enciumado querendo ir embora. E o medo até acalanta quem o sente com mais intensidade do que sente o amor; mas e quanto ao outro, à outra pessoa que ainda ama? Como fica ela, sem medo e sem reciprocidade em seu afeto?! Amar sem ser amado... pobre de quem passa por isso! Por isso a gente precisa relativizar a mentira: tem vezes em que mentir nem é tão repudiável. É só olharmos pra quem ama sem ser correspondido: quando o medo se mete num coração que antes amava, obriga o outro à mentira, a declarar aos sete ventos que também ele deixou de amar. Não porque não mais ame de verdade, nem por pretender que seus amigos e parentes acreditem naquelas palavras. Quem ama sem ser amado afirma não amar por precisar convencer a si próprio, não aos outros. Se apega ao velho ditado que diz: “uma mentira repetida por cem vezes torna-se verdade”. Então, “eu não a amo, eu não a amo, eu não a amo...”. Ainda que pra isso rasgue o peito e estoure os miolos, apenas mente que o ser amado deixou de ser o vício da sua vida por precisar mentir, porque se dispõe a ser feliz mas sabe que é impossível ser feliz sozinho.

Certa vez, tive um amor me deixou porque... porque me amava! Ou melhor, deixou por receio. Ficamos juntos até o dia em que ela se deu real conta de que me amava. Mas como não queria chamar de amor o que sentia, preferiu me deixar. É, acho que o mais apropriado é dizer que meu amor me trocou pelo medo de amar. A confiança, a cumplicidade, as declarações, carinhos e afetos, nada foi suficientemente maior que seu medo de amar. Não a culpo, também, crescer – como quase toda garota – com uma mãe ao pé do ouvido dizendo que a mulher deve se esforçar a fim de não ser pegajosa nem sufocante, além da necessidade de ser independente, claro... e de repente, se olha no espelho e vê sua cara de peixa-morta, completamente apaixonada... E nem só a mãe, mas todo o resto do mundo: do que ela não se dá conta é de ser este o mesmo mundo que desaprendeu como se faz pra ser feliz.

Como um grande lago é o amor, atraente, imenso e belo feito nada. Talvez só não tão belo quanto os olhos da mulher amada. Mas quanto maior o lago, quanto mais longe for a margem oposta, mais medo temos de nos atirar e dele nunca mais descobrir onde é a saída. Assim é o sentimento: maior o amor, mais medo nos dá. Ainda porque não há lago tão profundo como o mais raso dos amores. Por isso não a culpo, aquela de que falei lá em cima. Na verdade, não me cabe julgá-la, menos ainda condená-la! Eu apenas a aceito, nas suas decisões, nas discussões e desejos: enquanto ela der ouvidos ao seu coração, pouco importa o que queira ou como queira: seu coração está sempre certo, ainda que esteja errado. E, de qualquer forma, não dizem haver doido pra tudo? Pois bem, talvez ela só estivesse assim, doidinha, e nesse momento de insanidade achou até possível ser feliz sozinha.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Morrer de amor


– Amor, já tá dormindo?
– Não, amor, o que foi?
– Nada demais, só queria saber se você me ama?
– Amo, claro.
– Faria tudo por mim.
– Qualquer coisa, amor.
– Até dar a sua vida por mim, você daria?
– Agora, se fosse preciso. Mas, como não é, que tal irmos dormir?

...

– Amor, já ta dormindo?
– Não, amor, o que foi?
– Nada demais, só queria um copo d’água, tenho sede.
– Humm... interessante.
– Você não pode ir pegar pra mim?
– ...
– Amor?
– Ronc!

Já se foi o tempo em que se morria de amor. “Morreu? De que?” e o outro responde “Por amor”. Ou damos uma grande gargalha ou nem entendemos mais do que se trata: “o que é isso, a sigla de uma doença recém-descoberta?”. Não, ninguém mais morre de amor. Trabalho, estudos, aquela promoção com que sempre sonhei... roda o relógio e eu preciso ir no banco, gira o ponteiro e eu sigo pro supermercado, os ponteiros correm tanto que eu quase esqueço de pegar as crianças no supermerc... digo, na escola. E no meio de tudo ainda me vem um engarrafamento desses! E tome buzina, e tome buzina e tome buzina. Ah, também quando chegarem as férias, faço a viagem dos meus sonhos ao Caribe. Quem vem comigo eu não sei, mas eu vou. Claro, preciso arranjar dinheiro pra isso. Preciso ganhar dinheiro com um trabalho. Por sinal, preciso de um emprego melhor pra ganhar mais dinheiro pra viajar ao Caribe. E preciso renovar o guarda-roupa pras entrevistas chiques de emprego e... ai, celular chato! “tá, amor, chego em casa mais tarde”... quando me aposentar ainda aprendo a velejar e depois vou passear no shopping, participar de um rally e jogar truco com os amigos na praia...

Quem nos pode culpar? Há tanto a se fazer, tanto que planejamos, quem mais tem tempo pra amar? Digo, pra amar não, pra amar sempre há um tempinho, no fim do expediente, sexta-feira à noite, “é até bom que a gente descansa”. Mas amor maior? E mais, morrer de amor? Pra isso não há tempo não.

Não haver mais tempo pra isso significa, obviamente, que ninguém mais morre de amor? Pode até ser, mas prefiro não pensar assim. Digo, então, que o fato é que não se morre por um amor de sexta-feira à noite. Por sinal, nunca nos dispusemos a morrer por amores adjetivados, mas, somente, pelo simples amor. É aquele substantivo puro, o afeto, o tão alardeado – e gostoso – amor: esse mesmo que é o maior (e único!) de todos. Quem ama acreditando já haver amado anteriormente por uma vez que seja – esse sim nunca se disporia a morrer por amor – não ama de fato, pois o amor é incapaz de reconhecer que já houve anteriormente, se for amor de verdade. Amar é tão incrível e maravilhoso que a gente acredita jamais haver sentido nada igual e o melhor: é verdade! Jamais o sentimos antes. Nunca! Na vida, apenas amamos uma vez e é sempre a última.

Na Alemanha oitocentista havia uma clara divisão entre os mortos e os vivos, isto é, os que haviam lido Fausto e os que se recusavam. Morrer de amor pro romantismo alemão era padrão (e ainda os chamam de frios), estranho era ser capaz de manter-se vivo se apaixonado. Hoje, as coisas parecem um pouquinho diferentes... mas somente um pouquinho? Nestes dias, tem sido válida a lei do menor esforço: se eu juro que a mulher ao meu lado é impreterivelmente minha, não há porque de mais jantares à luz de velas, de novas núpcias a cada fim de semana: pra que empenho a fim de conquistar o que já foi conquistado? Pra que se esforçar, pra que se estressar... ela já é minha. Hoje e eternamente minha. Mais confortável é sentar na poltrona e ver TV e, se ela me ama, vai entender até isso como prova do meu afeto.

Talvez sejam hoje frios os alemães (só um palpite) por lembrarem do que o romantismo fez com eles. E, se tem algo que parece imutável desde então e em qualquer lugar é a tal da carência afetiva. Em razão dela existem mulheres e homens apelidados de “minha” e “meu” por seus parceiros. No final das contas, porém, pretender-se dono de alguém é um atestado de preguiça e/ou temeridade. Isso mesmo: chamar de “meu” ou “minha” qualquer ser humano é colar na própria testa um adesivo bem grande “preguiçoso” ou “medroso”. Medo por descrença, por precisar afirmar pra si toda vez a mentira de ser dono de algo que a ninguém pertence. Preguiça por deixar de aceitar a realidade de que o amor nunca é estático, nunca para, jamais pode ser contido: se tentamos barrá-lo, das duas, uma: ou ele derruba a barreira imposta, ou se retrai. Nos acomodamos não no amor, pois amar é incompatível com acomodação, mas na situação social em que a relação nos insere. Num dia-a-dia assim tão corrido, cansativo como jamais houve, é bom ter a certeza do “meu” arroz com feijão, de uma “minha” namorada, noiva, mulher e até amante, que vai me ajudar a manter a agenda sexual em dia e não me fará sentir inseguro... mesmo que, pra isso, também não me faça sentir mais nada.

Amar dói, machuca, não é confortável. Talvez nem seja tão absurdo dizer que todos os enamorados são masoquistas: por querer amar, isto é, por gostar de sofrer(?). E não só o amor humano, mas até o divino, pois o Cristo não veio pra trazer a paz, mas sim a espada. O amor carrega consigo a prerrogativa de ser a maior força de que se teve notícia: capaz de destruir montanhas e impérios... e, sobretudo, capaz de gerar uma nova vida! Isso é o que eu chamo de potência, papai do céu! O poder do ato de amar faz dele nunca calmo e impassível; sempre violento: no desejo, no afeto, no descanso, no bem-qerer-bem e até na brandura ou na paciência de ouvidos atentos. O amor se mostra, não passa despercebido. Amar é sempre intenso e desconhece o “não querer”, o “querer menos”, “querer pouco, quase nada”. Quem ama quer. Quer! E quer ainda mais, sempre mais. Por isso se afundar no conforto cômodo das almofadas da sala não é senão faltar com amor. Amar aproxima-se mais de sentir a própria vida desgraçada por não ter o ser amado consigo, ou nem mesmo sentir um resquício de vida pulsando nas veias: “vida é quando estamos juntos, separados somos apenas a expectativa, a esperança de viver”.

... que ela seja, eternamente, minha amada, pois de propriedades já basta a caneta com que se escreve este texto!

Agora, peço licença pra encerrar, pois tenho uma vida de que dar cabo: infelizmente moro no primeiro andar, acho que nem me atirando de cabeça no chão dá pra fazer grandes estragos. Será que o vizinho do 17º vai se ofender se eu pedir pra usar sua varanda?

– Pra que? O que você quer na minha varanda?
– Nada vizinho, nada demais. É que eu estou amando e, por conta disso, tenho uma vida de que dar cabo.
– Hã?!
– Não somos românticos alemães, mas ainda somos gente e, em se tratando de seres humanos, você sabe como é, né, vizinho: amar só tem graça se pra morrer de amor.

Arrivederci!

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

E se fez a mulher.



Ele fez o dia e a noite. Fez o mundo.
Ele fez as pedras e minerais, fogo, água, terra e ar.
Ele criou a vida e, com ela, fez maravilhas.
Ele fez nascer as plantas e fungos, grandes florestas e descampados;
montanhas, planícies, desertos e a imensidão do oceano.
Ele fez maravilhas com a vida.
Ele fez habitarem a criação gato, cachorro, periquito e papagaio.
Ele fez a mulher e o homem, afinal.
E pra que tudo ordenassem e se destacassem dos outros animais
Ele lhes deu um de seus mais preciosos caracteres: a inteligência.
Ele descansou e, quando acordou, achou que ainda faltava algo,
sua criação estava incompleta: faltava a beleza.
Ele chamou a mulher e disse que lhe concederia uma última graça.
Ele fez da mulher a mais bela dentre os seres da criação
e o homem se apaixonou de imediato.
Ele descansou novamente e, ao acordar, achou que algo sobrava.
Ele chamou a mulher e disse que não havia sido justo:
Ele lhe fizera a mais bela criatura, além de dotá-la de inteligência
enquanto ao homem restou a razão numa carcaça decadente.
Ele estalou os dedos e, sem que ela nada sentisse,
Ele lhe disse que podia ir e adormeceu quando ela foi falar com o homem.

Ele acordou dali a dois dias.
O homem sentava-se ao seu lado:
“Não quis acordá-lo pra que não se irritasse”
“O que te traz a mim?”
“Algo de estranho, Senhor, estranho na criação.”
“De que se trata? Não gostas das plantas, animais?”
“Trata-se, Senhor, da mulher.”
“O que tem? Não te satisfaz? Não é como tu e ainda mais bela?”
“Bela como nada mais!”
“Então o que?!”
“Senhor dos senhores, tu que tudo fizeste sabes do que trato quando digo estar apaixonado.”
“E não? Claro que sim!”
“Pois me explica o que se passa com ela que quando diz me amar, se afasta e ao me desprezar, me quer ainda mais. Se sou delicado, ela me quer bruto e, se impassível, me tira de seu lado. Ontem, passeávamos pelo jardim e ela me pediu uma flor; pois acredite, meu Senhor: a mulher pensa numa margarida, fala da violeta, pede um girassol quando, na verdade, deseja uma bela rosa.”
“Explicar? Pois já a fiz, a mulher, linda e inteligente. Desejá-la simples é demais. Foi o que tirei dela: a possibilidade de ser compreendida. E esta, homem, será tua sina e destino eterno: pra sempre apaixonado, tentarás entender o que nem eu hei de poder decifrar: os desejos e pensamentos de tua bem amada, a mulher."

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Nosso Senhor de Porto Príncipe


Pelo sacrilégio, Deus me perdoe, mas... Deus não perdoa! Se perdoasse não fazia com o Haiti o que tem feito. É brega, é clichê, mas sim: pobre do Haiti. Pobre mesmo. Falo da mais miserável economia da América, mas nem é disso que se trata, e sim da impiedade divina contra um punhado de terra imprensado entre o mar do Caribe e a República Dominicana. E que terrinha desgraçada...!

Aos que se sentiram vingados com o Katrina (porque “com a natureza nem os EUA podem”) meus pêsames: as crianças que sofreram eram tão crianças quanto quaisquer outras. Aos que se sentiram com a queda das torres gêmeas, piedade por acreditar que a morte de um punhado é bênção pro resto: era quase isso que Hitler pensava. E, vejam só, a queda das torres resolveu tanto o problema do mundo que, desde 2001, todos vivem em paz sem ouvir falar de guerra ou opressão, não é?!

Mesmo antes de Nietzsche, catástrofe natural já havia perdido o status de condenação da justiça divina. É fácil pra quem sobrevive dizer que um terremoto ou furacão foi o dedo de Deus apresentando sua fúria. Sinceramente, se eu engrossasse o número de mortos, não acharia essa uma forma razoável nem justa de se pensar. Mas... e daí?! Se eu estivesse morto, ninguém me escutaria: quem morre, apenas se cala e ainda é forçado a ouvir um bocado de discursos inflamados de tanta palavra e pouco sentimento. Atitude então, é coisa rara! Tenho quase certeza de que daria trinta medalhas de honra pra ter minha vida de volta...

E é quando se vê como não cabe a Deus perdoar. Ou melhor, cabe sim: que Ele tenha piedade das almas dos homens e mulheres, pois se o Japão foi condenado a tantos tremores a mais que as Antilhas, as mortes no Haiti não são, de certeza, responsabilidade divina, mas culpa nossa. Minha culpa. Minha culpa. Nossa culpa!

Que Deus me perdoe por blasfemar contra seu nome. Mas nos perdoe ainda mais por termos feito o que fizemos com o Haiti