segunda-feira, 5 de abril de 2010

Morrer de amor


– Amor, já tá dormindo?
– Não, amor, o que foi?
– Nada demais, só queria saber se você me ama?
– Amo, claro.
– Faria tudo por mim.
– Qualquer coisa, amor.
– Até dar a sua vida por mim, você daria?
– Agora, se fosse preciso. Mas, como não é, que tal irmos dormir?

...

– Amor, já ta dormindo?
– Não, amor, o que foi?
– Nada demais, só queria um copo d’água, tenho sede.
– Humm... interessante.
– Você não pode ir pegar pra mim?
– ...
– Amor?
– Ronc!

Já se foi o tempo em que se morria de amor. “Morreu? De que?” e o outro responde “Por amor”. Ou damos uma grande gargalha ou nem entendemos mais do que se trata: “o que é isso, a sigla de uma doença recém-descoberta?”. Não, ninguém mais morre de amor. Trabalho, estudos, aquela promoção com que sempre sonhei... roda o relógio e eu preciso ir no banco, gira o ponteiro e eu sigo pro supermercado, os ponteiros correm tanto que eu quase esqueço de pegar as crianças no supermerc... digo, na escola. E no meio de tudo ainda me vem um engarrafamento desses! E tome buzina, e tome buzina e tome buzina. Ah, também quando chegarem as férias, faço a viagem dos meus sonhos ao Caribe. Quem vem comigo eu não sei, mas eu vou. Claro, preciso arranjar dinheiro pra isso. Preciso ganhar dinheiro com um trabalho. Por sinal, preciso de um emprego melhor pra ganhar mais dinheiro pra viajar ao Caribe. E preciso renovar o guarda-roupa pras entrevistas chiques de emprego e... ai, celular chato! “tá, amor, chego em casa mais tarde”... quando me aposentar ainda aprendo a velejar e depois vou passear no shopping, participar de um rally e jogar truco com os amigos na praia...

Quem nos pode culpar? Há tanto a se fazer, tanto que planejamos, quem mais tem tempo pra amar? Digo, pra amar não, pra amar sempre há um tempinho, no fim do expediente, sexta-feira à noite, “é até bom que a gente descansa”. Mas amor maior? E mais, morrer de amor? Pra isso não há tempo não.

Não haver mais tempo pra isso significa, obviamente, que ninguém mais morre de amor? Pode até ser, mas prefiro não pensar assim. Digo, então, que o fato é que não se morre por um amor de sexta-feira à noite. Por sinal, nunca nos dispusemos a morrer por amores adjetivados, mas, somente, pelo simples amor. É aquele substantivo puro, o afeto, o tão alardeado – e gostoso – amor: esse mesmo que é o maior (e único!) de todos. Quem ama acreditando já haver amado anteriormente por uma vez que seja – esse sim nunca se disporia a morrer por amor – não ama de fato, pois o amor é incapaz de reconhecer que já houve anteriormente, se for amor de verdade. Amar é tão incrível e maravilhoso que a gente acredita jamais haver sentido nada igual e o melhor: é verdade! Jamais o sentimos antes. Nunca! Na vida, apenas amamos uma vez e é sempre a última.

Na Alemanha oitocentista havia uma clara divisão entre os mortos e os vivos, isto é, os que haviam lido Fausto e os que se recusavam. Morrer de amor pro romantismo alemão era padrão (e ainda os chamam de frios), estranho era ser capaz de manter-se vivo se apaixonado. Hoje, as coisas parecem um pouquinho diferentes... mas somente um pouquinho? Nestes dias, tem sido válida a lei do menor esforço: se eu juro que a mulher ao meu lado é impreterivelmente minha, não há porque de mais jantares à luz de velas, de novas núpcias a cada fim de semana: pra que empenho a fim de conquistar o que já foi conquistado? Pra que se esforçar, pra que se estressar... ela já é minha. Hoje e eternamente minha. Mais confortável é sentar na poltrona e ver TV e, se ela me ama, vai entender até isso como prova do meu afeto.

Talvez sejam hoje frios os alemães (só um palpite) por lembrarem do que o romantismo fez com eles. E, se tem algo que parece imutável desde então e em qualquer lugar é a tal da carência afetiva. Em razão dela existem mulheres e homens apelidados de “minha” e “meu” por seus parceiros. No final das contas, porém, pretender-se dono de alguém é um atestado de preguiça e/ou temeridade. Isso mesmo: chamar de “meu” ou “minha” qualquer ser humano é colar na própria testa um adesivo bem grande “preguiçoso” ou “medroso”. Medo por descrença, por precisar afirmar pra si toda vez a mentira de ser dono de algo que a ninguém pertence. Preguiça por deixar de aceitar a realidade de que o amor nunca é estático, nunca para, jamais pode ser contido: se tentamos barrá-lo, das duas, uma: ou ele derruba a barreira imposta, ou se retrai. Nos acomodamos não no amor, pois amar é incompatível com acomodação, mas na situação social em que a relação nos insere. Num dia-a-dia assim tão corrido, cansativo como jamais houve, é bom ter a certeza do “meu” arroz com feijão, de uma “minha” namorada, noiva, mulher e até amante, que vai me ajudar a manter a agenda sexual em dia e não me fará sentir inseguro... mesmo que, pra isso, também não me faça sentir mais nada.

Amar dói, machuca, não é confortável. Talvez nem seja tão absurdo dizer que todos os enamorados são masoquistas: por querer amar, isto é, por gostar de sofrer(?). E não só o amor humano, mas até o divino, pois o Cristo não veio pra trazer a paz, mas sim a espada. O amor carrega consigo a prerrogativa de ser a maior força de que se teve notícia: capaz de destruir montanhas e impérios... e, sobretudo, capaz de gerar uma nova vida! Isso é o que eu chamo de potência, papai do céu! O poder do ato de amar faz dele nunca calmo e impassível; sempre violento: no desejo, no afeto, no descanso, no bem-qerer-bem e até na brandura ou na paciência de ouvidos atentos. O amor se mostra, não passa despercebido. Amar é sempre intenso e desconhece o “não querer”, o “querer menos”, “querer pouco, quase nada”. Quem ama quer. Quer! E quer ainda mais, sempre mais. Por isso se afundar no conforto cômodo das almofadas da sala não é senão faltar com amor. Amar aproxima-se mais de sentir a própria vida desgraçada por não ter o ser amado consigo, ou nem mesmo sentir um resquício de vida pulsando nas veias: “vida é quando estamos juntos, separados somos apenas a expectativa, a esperança de viver”.

... que ela seja, eternamente, minha amada, pois de propriedades já basta a caneta com que se escreve este texto!

Agora, peço licença pra encerrar, pois tenho uma vida de que dar cabo: infelizmente moro no primeiro andar, acho que nem me atirando de cabeça no chão dá pra fazer grandes estragos. Será que o vizinho do 17º vai se ofender se eu pedir pra usar sua varanda?

– Pra que? O que você quer na minha varanda?
– Nada vizinho, nada demais. É que eu estou amando e, por conta disso, tenho uma vida de que dar cabo.
– Hã?!
– Não somos românticos alemães, mas ainda somos gente e, em se tratando de seres humanos, você sabe como é, né, vizinho: amar só tem graça se pra morrer de amor.

Arrivederci!

3 comentários:

  1. arrasando nos textos como sempre.
    pena que demora para dar o ar da graça.. definitivamente entendo essa vida de universitário.

    beeijinhos vivi!

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  2. Espero que o vizinho do 17 andar nunca lhe abra a pporta...

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