quinta-feira, 31 de julho de 2014

Quando o Galo Cantou


O galo não canta. Galo não há. Aqui, apenas uma cama, cobertas amassadas e teu corpo despido de pudores. O meu, encaixado, passa uma perna por dentre as tuas. Teus pés escapam com o meu dos lençóis, enquanto uma das minhas mãos se estica por cima do teu lado, quedando-se por sobre a tua. Meu outro braço por baixo do nosso travesseiro compartilhado.
Abro os olhos: não é sonho. Fecho-os, sinto-te o cheiro, seguro tua mão por baixo da minha. Abro-os novamente quando te mexes. Apenas um pouco. Adormecida com ar de riso cuja visão me embriaga. Trago a mão para tua nuca exposta pelos cabelos desgrenhados no travesseiro. Respiro no teu ouvido e tu, depois de um bocejo, respondes gemendo e fazendo força com os pés tanto para se esticar quanto para prender o meu. Teu braço passa sobre minha cintura e engancha-se nas minhas costas a fim de deixar-me bem rente a ti, quase nos confundindo. Sorris, ainda de olhos fechados, quando arrasto minhas unhas por teu pescoço até a nuca. Riso maluco, riso de quem quer. Como quisemos na noite anterior. Como queremos.

*     *     *

Eu tive certeza de que aquela noite não teria fim. A mesma que eu tinha de que nunca mais nos desgrudaríamos. Aquela certeza dos que experimentam a singular capacidade dos desejos de emperrar ponteiros e confundir cartógrafos.
Relógio para um lado, teu vestido para baixo, minhas roupas em qualquer lugar bem longe do corpo. Meu corpo em todo lugar em volta do teu.
Com o tempo há muito parado, a noite nos velou por muito amor. Enfim, porém, desistiu de nos acompanhar e decidiu partir de tão cansada. Para nós, no entanto, não havia noite ou dia, sol, céu índigo ou Atlântico Sul! Mesmo quando a luz esgueirou-se para dentro do quarto, não pude vê-la, apenas teus pelos dotados de luz própria e as gotas de suor que eles ciceroneavam por toda a extensão das tuas pernas.

*     *     *

Tanto desejo... mais vontade! Beijo-te as panturrilhas e mordo-te as coxas: te quero devorar! Você me segura pelos cabelos – sem me conter! Não poderia, nada me pode parar! Não agora, nada aqui, não no nosso lugar. Não quando o que você menos quer é que eu pare: risos com que me acaricias os ouvidos, pernas com que me abraças o tronco, seios com que te espalhas sobre mim e me apertas e mordes e marcas e nos amamos!
“Não, não se pode. Ninguém pode ser tão feliz!”. Teus olhos brilham vezes a fio a cada palavra. E eu, impotente de qualquer coisa senão sorrir e encarar-te, deito a cabeça ao lado do teu pescoço por querer – sem merecer – nada além da paz do teu cheiro suado depois de amar.
“Nós temos que ir.”
“Temos.”
“Já é dia.”
“Claro.”
“Mas...”
“O que?!”
“Tudo ainda tão calmo.”
“Não temos?!”
“Temos!”
“Então?!”
“Deixa.”
“O que?”
“Cantar o galo.”

Ainda não olhei pela janela para saber de galos ou dromedários. Na realidade, cheguei a aproximar-me da varanda na véspera, quando teus olhos fitavam qualquer coisa do lado de fora e eu resolvi te mostrar como nada seria mais interessante que nós dois.
Nós que aqui estamos. Em paz. Sem cantos, galos ou tic-tac’s. Nós que aqui somos. Só nós. Nada mais.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

whatever works


Tradução livre: “Eu odeio as festas de ano novo, todos loucos pra se divertir, tentando comemorar de algum jeitinho patético. Comemorar o que? Um passo a mais pro caixão? É por isso que eu nunca me canso de dizer: qualquer amor que você possa dar e receber, toda felicidade que você possa conseguir ou oferecer, qualquer bem, ainda que mínimo e circunstancial, tudo pode funcionar! Mas não se engane, fazer com que deem certo de forma alguma cabe à sua própria ingenuidade humana, pois uma parte maior da sua vida do que você gostaria de admitir resume-se à sorte. Nossa, você sabe as chances de somente aquele esperma do seu pai, entre bilhões, encontrar o único óvulo que formou você?! Não pense nisso ou você terá um ataque de pânico!”


Tudo pode dar certo. Pode. Mas, se pode, então pode também dar errado. A sorte nos lança na vida com um grau de certeza inversamente proporcional ao de aleatoriedade. Em outras palavras, enquanto o mais próximo futuro é completamente incerto e imprevisível, ao se tornar presente, num dia, num suspiro, um instante, praticamente tudo é possível transformar-se em realidade. Num sopro da mais padrão normalidade, tudo pode mudar, ou apenas algumas coisas. Pode morrer, renascer, virar de ponta cabeça ou até continuar na mais imutável inércia dos fatos.

quem acredite que quanto maior o grau de incerteza, mais vale à pena viver. Pra outros, porém, pensar que da vida não se tem o controle calafrios. É bom, no entanto, que todos se conformem com a realidade dos fatos: em cada instante de um novo dia há, sempre e sem exceção, dois elementos presentes, duas forças agindo concomitantes e complementares: sorte e escolha. O primeiro é invariável, a presença implacável do que nos foge ao controle. É o aleatório. O segundo, por sua vez, é a manifestação da nossa vontade. Nós sempre temos opçõesmesmo que nenhuma agrade. E cada novo caminho tomado nos levará a novos e estes a outros ainda e outros e outros e... Sorte e escolha, ambas sempre presentes, condicionam-se mutuamente e o resultado dessa equação é o que costumamos chamar devida.

Óbvio que, pra poder escolher entre dois caminhos de uma bifurcação, ela precisa antes existir e quem a faz aparecer é a sorte. Claro também que a gente constrói nossa história a partir das próprias escolhas, mas não se engane: se, por qualquer acaso, teu pai tivesse demorado alguns segundos a mais pra ejacular àquela noite, não seria você, mas outro o espermatozoidevencedor. Da mesma forma como seria se você (pelo menos sua metade paterna) não tivesse se esforçado tanto. É isso: mesmo quando a gente tem apenas meia dose de cromossomos as duas estão presentes: a tal da sorte e sua companheira, a escolha.

Quer dizer, sorte, deus, destino, nomes diversos pro mesmo evento: a manifestação de nossa racionalidade buscando alguma razão que justifique a aleatoriedade dos fatos da vida. Talvez, então, a gente devesse deixar de ser tão racional e, quem sabe, não aceitássemos melhor a vida bem do jeito que ela é: uma sucessão de razões improváveis loucamente concatenadas e fins absurdamente imprevisíveis. Por sinal:fins? Fora a morte, tudo na vida parece ser nada além de começo. Nada, contudo, começa sem que nós o desejemos e façamos por onde começar.

O melhor exemplo? Quem adivinha? Ah, também não é tão difícil: o amor. Amar é assim, ninguém pode escolher quando e por quem se apaixonar, mas não há quem ame sem decidir abrir-se para amar. Amor é uma escolha, portanto? Não! De jeito nenhum! Cruz credo! Amor não é uma escolha, mas deixar de amar é. Fechar-se pro amor – ou dele fugir – encontra-se na esfera da vontade própria tanto o quanto é aleatória a mais patética paixão. E isto, ao contrário do que dizem os homens de vestido – quer chamemos tais panos de toga ou batina –, não acontece num simples momento, ao menos não num momento senão por dia: amar é uma escolha diária, de preferência matinal – a não ser que você seja daqueles seres soturnos, que pra se transformar em coruja faltam apenas olhos esbugalhados e meia dúzia de penas. Abrir-se ao afeto, à vivência dos relacionamentos, deixar entrar o desejo de amar e ser feliz é sentido, fim e, sobretudo, princípio fundamental e contínuo de cada dia de nossas vidas. Por isso, como disse o sábio ranzinza no filme acima:

Resta-nos abrimos as trancas pra quando o amor chegar, ainda que da menos esperada dentre as imprevisíveis formas, vá entrando sem sequer ter que bater à porta.

domingo, 24 de julho de 2011

Carina e Thor

Distância. Nem é tão longa a palavra, bem ao contrário daquilo que descreve. Quer dizer, também não é necessariamente grande seu objeto: depende do quanto se deseja o que ele separa. Há vezes em que um cômodo, o corredor é suficiente pra fazer-nos classificar como imensa a distância até o quarto da mãe, bem ao contrário de quando ela nos chama de lá pra dar uma bronca. Por vezes, até menos: distância é função direta da saudade.

Curioso pensar que também o inverso é verdade: ao contrário do que se tanto costuma dizer, saudade depende mais da distância que do tempo há que se está afastado. Pelo menos em se tratando de curtos períodos. Um dia, dois, uma semana... quando chegam os meses, talvez a história já mude...

Calculando pela data do casamento, em dezembro, somado à viagem curta de logo depois, acho que eles só tomaram coragem de atravessar o Atlântico em fins de janeiro ou já fevereiro. Confesso estar ansioso pra saber quando vem a coragem de voltar! Coragem, talvez vontade. Mas nem sempre vontade basta ou basta apenas ao se tratar de maior vontade que qualquer outra. Pelo que conheço de Carina e Thor – que muitos diriam ser pouco em razão do tempo ou qualquer outro critério desprezível – não lhes falta vontade de sorrir! Ao menos nunca faltou a cada vez os vi juntos, até mau humorada, até cansado, mesmo de ressaca de uma bela noite bela. Espero, então, que de sorrisos estejam pincelando as ressacas desses vinhos italianos, cujas bebedeiras com certeza são as mais divertidas e de que eu sinto tanta falta mesmo delas não participando...

Pode nem parecer – eu não sei se, no lugar deles, acreditaria no que escrevo – mas quando uma criança sente falta da mãe, o que faz? Corre atrás dela, esperneia, chora, lhe chama a atenção de qualquer jeito. A mãe, porém, é pra criança a inteireza de seu mundo, a fonte do seu aconchego, alimento, carinho e proteção. Pois é, eu não tenho esperneado ultimamente, não que eu lembre, nem sequer ao ver as fotos das viagens de Carina e Thor, sentindo inveja da gente de sorte que lhes teve a companhia numa eurotrip, ou quando me pego sorrindo de como era divertida a mais sacal manhã de um sábado abusado, alla lezione d’italiano. É, acho que isso significa que Carina e Thor não são minha mãe... que bom!

Não que mãe seja ruim, mas uma é já o suficiente. Não, Carina surgiu na minha vida como uma irmã, logo eu que sou gêmeo, já nasci com uma irmã a tiracolo – e outra mais velha a nos esperar, recebo outra de bom grado da vida num tempo curto, bem curto. E sequer como mãe, eu não simplesmente a "recebi": ou ela acha que seu carisma é irresistível?! Não, Carina carina, mais que imposição circunstancial da vida, você me foi uma escolha. Eu poderia ter me afastado, tê-los ignorado, não lhes dado atenção... quer dizer, quando vejo as fotos dos meus afilhados, chego a duvidar de que poderia... O fato é que também eu lhes fui uma escolha. Talvez nem tão acertada, com certeza ausente, mas que os ama como os amigos que são, como irmã e cunhado (no melhor sentido que esse termo tiver, Thor!) e que, comigo, quero carregar até longe, até ausente, até um oceano distantes.

: distância é como calor, falando pode até parecer ruim, mas só quando existe acima do razoável incomoda de fato. Quem nunca se apertou numa sala pequena, num show, estádio de futebol, no carnaval, quem nunca quase sufocou com a falta de espaço diretamente proporcional à quantidade de gente que atire a primeira pedra! Quem nunca sentiu falta de pessoas que ama, então, nem fale...

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O Especialista

O velho mogno escuro jamais havia ressoado daquela forma. Não somente os passos firmes dos sapatos faziam tremer a madeira do chão, mas a tensão no ambiente. Assim como o chão, as paredes, as cortinas, portas e janelas, tudo e todos os presentes na ante-sala pareciam compartilhar da mesma apreensão, o que transformava o ambiente repleto de ar num quase vácuo em que o mais difícil era respirar.

Naquela ante-sala, só os homens estavam, à exceção da ama. Permitiu o Senhor da casa que ela permanecesse recostada numa cadeira no canto, próxima à parede, em razão de haver sido a primeira a presenciar o ocorrido: quando entrou no quarto da patroa cantarolando como sempre, mal sabia o que lhe esperava, e qual não foi seu horror quando viu sua senhora estirada na cama manchada de sangue.

Talvez, mais apropriado falar em “ordem” que em “permissão” do Senhor. Afinal, quando acudiram todos aos gritos da mucama, o dono da casa grande mandou sair a negra dos aposentos de sua senhora e, na sua frieza habitual que já nem mais chocava os parentes e empregados, ordenou que o especialista fosse trazido imediatamente. “Pouco me importam as horas que sejam, se é noite escura ou qualquer coisa, tragam-no já, agora! Só ele pode tomar as devidas providências”.

Apesar da hora avançada, ele apareceu impecável na casa , o especialista. O paletó era marrom escuro, mas foi logo tirado na antes-sala, assim que ele falou com o Senhor. “Pode deixar, nada me há de passar despercebido. Nada terá sido em vão”. Com um aperto de mão selaram o acordo e os passos do especialista ressoaram ainda, até que a porta do quarto da senhora fechada atrás dele fê-los emudecerem, bem como todos os homens presentes na ante-sala já estavam.

O tempo parecia não passar. O tio enrolava os bigodes, o primo tentava encontrar algum cabelo na careca que pudesse também ele enrolar. O Senhor já não suportava mais a enrolação lá dentro do quarto, queria saber logo e tudo, queria saber de sua Senhora!, mas o que quer que acontecesse lá dentro, a porta pesada o impedia de ouvir.

Gritos, urros, choro: os únicos sons capazes de ultrapassar as paredes e a porta de madeira maciça somente deram as caras ao final, logo antes de que o especialista suado e com as mãos sujas de sangue aparecesse através da porta dizendo, enfim: “nasceu, meu Senhor. Pode se acalmar, pois seu filho, enfim, nasceu”.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Ninguém é indispensável


Acreditar que ninguém é indispensável é um ato de amor. Não sei se Lord Byron concordaria com isso porém, em caso negativo, eu lhe contaria um segredo: mesmo depois de ele morrer, o mundo não parou de girar.

Se, pra cada morte de um ser humano, outro se matasse, a população mundial não teria atingido as cifras a que chegou. E, ainda que o mundo não seja lá o lugar mais tranquilo e feliz, com certeza seria, hoje, mais sombrio e melancólico, nessas “circunstâncias suicidas”. O fato é que não é assim, a vida não é assim, pois os dias dos que ficam continuam nascendo e se pondo, ainda quando os outros se vão.

E isso vale não só pra morte do corpo, mas pra dos sentimentos, da memória, pra quando alguém parte, sai de casa, viaja pra voltar ninguém sabe quando. E os que ficam? Bom, esses, no último momento, quando em vez de obstarem a partida do outro, apenas o abraçam e beijam e desejam boa viagem, esses demonstram aí todo o seu amor.

Não há amor sem liberdade. E dizer isso não torna este texto uma cartilha pró-relacionamentos abertos, mesmo porque decidir relacionar-se ou não com alguém sem as amarras da fidelidade é um exercício, no mínimo, da liberdade de pactuar. A liberdade numa relação conjugal é bem mais ampla que o simples conceito de fidelidade. É reconhecer em quem se ama um inteiro, uma pessoa, linda exatamente por ser completa. Quem quer uma “metade” de laranja pra se completar deve começar procurando-a numa sessão de psicoterapia, pois nenhuma relação que não entre “inteiros” pode ser saudável.

Ser menos carente, tornar-se menos dependente do outro é escolher amá-lo. Reconhece-lo como ser humano completo e, nessa completude, tão encantador a ponto de nos fazer apaixonar, é deseja-lo feliz. E quando fazemos isso, só quando queremos a felicidade de alguém é que podemos iniciar a felicidade conjunta, conjugal ou não.

Prender o outro, fazer dele sua posse, portanto, faz tão pouco sentido quanto querer estar com ele sem que ele também o deseje. Ao contrário, aceitar a possibilidade sempre presente da partida, de que ele nos deixe é desejar o seu bem, posto estarmos escolhendo a sua felicidade, pois permanecemos juntos acima de tudo porque a gente tem vontade e quer um ao outro e assim somos felizes; além de ser ato de amor próprio, porque afrente de qualquer vontade alheia, colocamos o nosso desejo de sorrir e reconhecemos que, pra isso, melhor estar sozinho que com quem não nos queira bem.

Pra quem, enfim, livra-se do peso de se preocupar com a possível partida, com a possibilidade do fim, o dia costuma amanhecer mais claro. Não por maior incidência dos raios solares, mas pelo sentimento que de repente surge de ser a vida boa agora, neste instante, bem quando devemos aproveitá-la, pois o amanhã importa tão pouco quanto tudo aquilo que não nos cabe conhecer. Mais importante do que prever o futuro torna-se viver o presente. Antes de pensar na partida, aproveitar o agora, quando estamos juntos e felizes. É a leveza do verdadeiro afeto, que não demanda nomes, assinaturas ou instituições pra existir. É a tranquilidade de quem está próximo porque quer e sabe ser a mesma coisa com os que o cercam. É a vontade de ter prazer despida de receios, em meio a sorrisos, amigos e conversas fiadas, pequenos ou grandes prazeres ao longo de uma longa noite que pouco importa quando vai terminar, mais importa é que já teve início.

Se amanhã a gente ainda pode amar, hoje faço hora extra no trabalho. Mas se tudo sempre pode acabar em despedida, melhor comprar-lhe logo aquele buquê de rosas pra ver abrir-se seu sorriso lindo mais uma vez. Melhor viver agora, antes que seja tarde.