quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Diplomacia brasileira

– A bandeira, agora, no chão!


Apesar da qualidade do tradutor, as coronhadas que davam na nuca eram compreendidas por Ricardo em muito mais alto e bom som que qualquer palavra. Ao cair, o pano branco da bandeira foi logo manchado pela areia do chão, cuja única cobertura era um tapete. O vento soprava caverna adentro e, por mais que estivessem bem no fundo, havia momentos em que era difícil até de respirar em razão da poeira circulando no ambiente.

Falaram algo naquele árabe de sotaque estranho, e Ricardo se arrependeu de ter pago um ano de curso intensivo da língua pra que, no momento de sua execução, tudo o que pudesse compreender da fala dos seqüestradores terroristas fosse praticamente nada. Tentava não se desesperar, lembrar de um ou outro termo mágico, do tipo “shazam” ou “alakazam”, qualquer palavra que interviesse em seu socorro. Mas apenas lhe apareciam as imagens de sua mãe chorando ao receber a notícia da morte de seu filhinho jornalista. Ela bem lhe dissera que ser correspondente internacional em países em guerra civil não era uma boa escolha... mas quem disse que alguém acima dos quinze escuta o que diz a mãe?

Ricardo viajou na classe executiva, aterrissou no último dia em que funcionou o aeroporto e não temeu correr atrás de todas as informações preciosas que somente o faro certeiro de um jornalista em terra estrangeira poderia conseguir. E tanto correu e tanto encasquetou procurar todo furo em qualquer buraco, que caiu nas mãos dos terroristas sequestradores que, como não obtiveram o resgate pedido, haviam-se decidido por matá-lo. E nem bandeira branca ou credencial de imprensa surtiram nenhum efeito.

A última coisa que ouviu do tradutor antes de ser posto de joelhos pra execução foi: “você terá a honra de ser executado pelo mestre”. Ricardo vendado podia pensar somente que, se na sua frente estava o mestre, também se encontrava ali sua última chance de pedir misericórdia. E, ainda assim, não lembrava uma palavra sequer na língua estrangeira.

Quando parecia pronta a execução, alguém interrompeu e andou rápido pra junto de um Ricardo ajoelhado, vendado e cabisbaixo. Puxou a gola do casaco dele fazendo menção de tirá-lo. O que parecia ser a voz do mestre deu uma resposta em tom positivo ao mesmo tempo em que o revólver era engatilhado. Aquele casaco fora presente de sua mãe pouco antes da viagem. Ricardo havia preparado uma mala só com roupas quentes, afinal era verão, mas sua mãe disse: “ouvi que há montanhas por essas terras, quem sabe se você não vai precisar”. Agora, porém, o couro iria aconchegar o filho de outra mulher.

O homem não puxou o casaco com violência, apenas pra não danificar o tecido. Abriu-lhe o zíper até o fim e...

... os olhos arregalaram-se, pareceu engolir em seco e chocado deu um salto pra trás, caindo sentado. A voz do mestre esperneou alto em tom certo de reprovação. O homem então levantou e foi falar-lhe, a que o mestre respondeu com uma interjeição de surpresa, o primeiro termo árabe que Ricardo foi capaz de identificar: “Oh!”

Os passos do mestre foram rápidos. Aproximou-se de Ricardo, tirou-lhe a venda, entregou a arma a um comparsa, abriu seu casaco e deu de cara com a camisa da seleção brasileira de futebol, a mesma que deixara seu subordinado estupefato. O rosto carrancudo se transformou numa grande gargalhada, baixou-se pra dar dois beijos em cada bochecha do prisioneiro e pulou e bateu palmas e rodopiou pela caverna gritando empolgado feito criança:

– Brasil! Brasil! Ronaldinho! Ronaldinho!

A bandeira branca já quase soterrada pela areia que o vento trazia do deserto foi testemunha ocular da libertação de Ricardo.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Mariana, a mãe de Gabriela

Ela não tinha sete meses quando foi morta. Braços e perninhas amputados e, por fim... bom, este texto não é um folhetim dos horrores pra que sua morte seja descrita em detalhes. Fato é que morreu e não por causas naturais, mas voluntariosas, de uma vontade que não a sua.


Chamemo-na de Gabriela. Não que tenha de fato recebido esse nome, mas era assim que a mãe sempre sonhara em chamar a primeira filha.

Foi meio a uma discussão sobre se Gabriela já possuía real vontade que a mãe conheceu Patrícia e chegou como convidada a uma ONG feminista. Em meio aos debates sobre machismo, sexismo no ambiente de trabalho e discriminação no trânsito, surgiu o tal fadado assunto do aborto: e Mariana – a mãe – não soube exatamente como reagir quando lhe disseram do fundo arrecadado para a promoção de cirurgias a fim de que a mulher grávida pudesse transpor as barreiras da opressão de gênero e tivesse autonomia sobre seu corpo.

Se Gabriela não houvesse morrido antes de aprender português, provavelmente perguntaria se ninguém pensava na autonomia do seu corpo. Mas ela não podia falar e como quem cala consente – inclusive pessoas impossibilitadas, como bebês de barriga – sua vontade foi apenas ignorada.

Antes, a mãe estava certa de que Gabriela deveria nascer. Todavia, com a graça da razão, Patrícia lhe abriu os olhos e a fez enxergar como, na verdade, aquele era um pensamento machista predominante na sociedade que tinha sido incutido no seu pensamento à força da opressão e só então Mariana pode tronar-se realmente livre.

E, livre, viajou ao estado vizinho – acompanhada por Patrícia. E, livre, sentou-se na sala de espera da clínica suando frio – mas não importava, Patrícia lhe dava a mão. E, livre, Mariana finalmente encaminhou-se pra sala da libertação; mas, ali, Patrícia não pode entrar...

... e, nem mais tão livre, o medo a fez pensar em vacilar, mas as palavras de Patrícia insistiam que não. “A voz de Patrícia é o som da liberdade”...

... e, sem qualquer resquício de liberdade, a mulher fraca vacilou perante a opressão machista sobre seu corpo:

Antes que a tocassem, a mãe de Gabriela correu e deixou a clínica e uma atordoada Patrícia pra trás e resolveu voltar a morar com a mãe que a recusara como filha: “não sou mãe de quem mata minha própria neta”. Assim, pobrezinha, viveu o resto de seus dias oprimida porque tinha que acordar exausta no meio da noite pra dar de mamar a Gabriela... e, que estúpida, ainda assim, ao olhar o rostinho da criança, achava-se a mulher de maior sorte do mundo, por haver escolhido a vida de Gabriela em lugar da sua liberdade e emancipação.

Droga! A menina foi salva: agora, preciso reescrever o início deste texto. Criança só sabe mesmo dar trabalho.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Niccolò Machiavelli

Ele morreu no século XVI. Ele, o tal Niccolò Machiavelli. Se muitos, à época, soubessem como ler, certamente o haveriam chamado de baderneiro, desagregador, simplório e, mesmo, de anti-Cristo. Mas não se podem considerar as opiniões todas, pois de certo teriam os que, ao vê-lo, gritariam com todo o ódio transbordando do peito: “moralista!”. Imaginem só, ele, um moralista! Que pecado!


Enquanto viveu, pregou suas teses finalistas tendo sempre em vista a consecução dos interesses políticos. Hoje, diz-se dele haver sido um estudioso descritivo, mas ninguém, político de carreira (governantes) ou de natureza (governados), costumava afirmar-se abertamente um modelo de suas teorias. Quem corroborava com elas, então? Todos e todas e nenhum, pois a verdade era conhecida, porém, como naquele conto, quem dissesse do rei estar nu seria decapitado.

Quando morreu o italiano, houve os que pretendessem furtar-lhe o corpo pra atirá-lo numa pira de fogo ardente junto com cada página do que escrevera. Todavia, o silêncio de seus admiradores não se refletiu em falta de atitude a fim de protegê-lo: não por menos, foi enterrado com grandes honrarias em túmulo de mármore – de localização hoje desconhecida.

Quando já não havia mente tão prodigiosa pra defender-se, levantaram-se em altas vozes alguns opositores. Eles, sim, com discurso moralista, viciaram os que forçados à política nada desejavam senão o domingo pra ir com a família no jardim zoológico dar pipocas aos macacos1. Daí, quando os príncipes, políticos de carreira, perceberam o número potencial de simpatizantes que essa atitude angariava, passaram eles mesmos a engrossar as filas do front anti-machiavelli.

Niccolò tornou-se mais um pensador indigente fadado a esconder-se entre os livros no banheiro de alguns príncipes – a cabeceira da cama era exposta demais pra se deixar lá em cima um texto infiel. E, apesar de todo esse ostracismo post-mortem, quando dois de seus admiradores se encontravam, ainda se saudavam com um sonoro “morte longa ao Nicolau!”. E assim agiam porque lhes era permitido, por saberem que honrar sua memória seria não se preocupar em apunhalar seu mestre pelas costas desde que, com isso, se pudessem contabilizar algumas cabeças a mais a seu favor.

O italiano satisfez-se: é provável que eternamente goze dos favores reais – ainda que no mais mórbido dos silêncios. Afinal, ninguém mais poderia pensar em ser rei sem seus conselhos, ainda que escondidos ao lado da pia do banheiro. Esteja onde esteja, sua fama seria irrefutável, mesmo que de privada em privada. Não era isso o que tanto queria?

___________
1 – Antes de ser acusado de plágio vil, digo que a frase “o domingo pra ir com a família no jardim zoológico dar pipocas aos macacos” foi tirada da música “Ouro de Tolo” do bom e velho Raul Seixas.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Ócio produtivo


Quando o estrangeiro chegou ao castelo, o senhor estava ocupado demais pra recebê-lo. Veio o segundo filho – o primogênito não estava em casa.


– O que quer?
– Se houvesse algum espaço pra passar a noite já...
– Sétimo quarto, terceiro corredor à esquerda.

E voltou a seus afazeres.
O estrangeiro passou três noites e dois dias dentro daquele quarto, sem que ninguém lhe viesse expulsar. Na terceira noite, apareceu o mesmo filho com quem falara.

– Apresse-se, ainda não foi embora?!
– Quero falar com seu pai.

Dali a pouco, entrou o primogênito.

– Como assim ainda não foi embora?!
– Já disse, quero falar com seu pai.

Na manhã seguinte, ao acordar, o estrangeiro viu a manta do conde sentada na poltrona ao lado da cama.

– O que lhe falta, senhor, pra partir?!
– Achei um desrespeito não me receber o senhor do castelo.
– Ora, eu tenho mais o que fazer do que perder meu tempo com um estrangeiro.
– O que seria mais importante?! Por acaso o senhor de um castelo trabalha?!
– Se eu trabalhasse, talvez houvesse ainda tempo.
– Então o que?
– Não que eu lhe deva satisfações, mas, por não ter tempo a perder, então falo.
– Pois fale.

Ele deu as costas e caminhava pra fora do quarto enquanto falava, sua voz diminuindo na medida em que se aproximava da porta.

– A maldição do espírito do mundo me força a criar sempre e continuamente. Nada posso ou faço senão criar. Por isso não me resta tempo pra esses tais trabalhos.

Quando sob a soleira, parou, virou-se e completou.

– Felizes os que possuem suficiente tempo ocioso pra trabalhar. A mim resta somente dedicar-me à arte, ao ofício de criar. Agora vá!

E retirou-se.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Amém!


Sentença: suicídio.


E como não foi espantoso ler isso! É verdade, não com tais palavras, mas é isso o que ele diz, Borges diz: num dos textos de “História Universal da Infâmia”, de título “O descortês mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké”, lá fala o porteño de um guerreiro condenado pelo assassinato de um par. Ele era samurai, e pros arautos da honra trajando armaduras nada existe de mais natural que o cumprimento sereno de sua pena, sem as tentativas, corriqueiras no ocidente, de ludibriar sua sorte traçada. Desse jeito, porém, assim é demais! Samurais à parte – que me cortem trinta cabeças se eu estiver errado! – como é possível condenar alguém ao próprio suicídio?!

Nenhuma criança gosta de ficar sem comer doces ou brincar por uma semana – mas pais e mães têm força suficiente a fim de se impor. Nenhum criminoso deve querer ter sua liberdade – menos ainda a vida! – restringida por um ato cometido, e lá vem o Estado fazendo pouco caso do que ele quer ou deixa de querer. Afinal, se a pena é desejada, que sentido há na sua existência? Têm casos em que alguém afirma a vontade de ser punido, por reconhecer seu ato como vil a ponto de merecer a sanção. Mas quem pode falar em autonomia com uma tal carga de peso sobre a consciência liderando o processo?! Não, a pena ainda é uma imposição externa, alheia a vontade do condenado. E, de qualquer forma, o caso desse samurai não se encaixa em nenhum desses padrões.

O guerreiro borgiano, quando recorre ao tribunal, não o faz a fim de ser punido. Ele não se acusa como culpado; porém, como tão honrado, admite seus atos, admite a morte do homem e sua autoria, deixando a cabo dos árbitros que lhe imputem culpa ou o absolvam. Não lhe cabe declarar se merece ser punido: a sanção continua sendo externa... E ainda assim, aceita, resignadamente, a pena de suicídio!

Ser condenado ao suicídio significa, no entanto, que o criminoso aceita a vontade de se matar. Poderia se pensar em apenas substituir, no caso, o peso na consciência, pelo respeito à sentença proclamada – assim, sim, poderia se enxergar um caractere externo pro cumprimento da pena. Mas até quem deseja a punição em razão de consciência pesada se entrega às autoridades pra que se façam cumprir as sanções. O paradoxo borgiano, porém, apresenta – com a normalidade de um café acompanhado de bolo de rolo no fim da tarde – as autoridades entregando nas mãos do condenado a possibilidade de se matar enquanto o fazem crer que ele, de fato, deseja a própria morte.

Não sei se porque nasci no ocidente, mas a pena de suicídio me parece um (muito) tanto quanto absurda. Imagine-se: Código Penal, art. 121 – Matar alguém. Pena: suicídio! Talvez o pensamento do ocidente judaico-cristão, tendo a vida por fiel da balança, princípio e fim de tudo – abstraindo-se isso das palavras de Jesus às de Hobbes –, como o bem mais precioso que há, ignore a possibilidade de valores diversos, como honra, respeito ou lá o que seja. Por isso o suicídio soa como uma condenação das mais estranhas: não se trata simplesmente de levar uma vida ao fim, mas de viciar a vontade do condenado, de obrigá-lo à perda do que nele restaria de altivo e digno, de lhe furtar o desejo de proteger a própria vida... Assim, claro, em se olhando de Moscou pra estas bandas de cá, pois, pras de lá, perder a dignidade seria não querer se matar quando ao suicídio condenado!

(Ninguém suicida ninguém senão si mesmo/a. Por essa razão, que tal uma campanha pela despronominalização do verbo “suicidar”? Afinal, se alguém diz “vou suicidar”, todos sabem quem estará morto no final, sem qualquer necessidade de completar com “vou suicidar-me”! Pior, ainda, se se encaixa a danada da mesóclise com um sonoro, pedante e erudito “suicidar-me-ei”! De um jeito ou de outro, no fim, com um mínimo de competência, ele/a estará bem morto/a.)

E não obstante esses parênteses, aparece um tribunal condenando um samurai ao suicídio. No entanto, apenas o réu pode suicidar (e não “suicidar-se”). Uma vez que se deixa seu cumprimento ao bel prazer do condenado, como, em última instância, se poderia ter certeza da efetivação da pena?! Na verdade, não se pode. A não ser num caso específico:

Às tantas, um grupo de samurais entra na casa de um guerreiro pra “fazer justiça” trazendo-lhe a morte. “Trazer-lhe a morte” porque, ao alcançá-lo em seu esconderijo, todos abaixam as espadas e pedem, imploram-lhe – de joelhos! – pra que suicide. Ele, no entanto, recusa continuamente até que, pros algozes, sua morte se torna mais interessante que o cumprimento dos rituais e os guerreiros o matam com a violência certeira de suas armas.

Suicídio por suicídio, do Fogo ao Sol Nascente, quando não há mais instâncias a que recorrer, sempre vai existir o bom e velho fio da espada pra fazer as honras da casa.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Wilhelm Friedrich Boullevard

A descoberta recente dos manuscritos do Ruhr surpreendeu parte da comunidade científica ao evidenciar a sintetização da primeira droga alucinógena já no século XVII.

Segundo os escritos de Wilhelm Friedrich Bullevard, um cozinheiro franco-boêmio, ele próprio teria descoberto a droga a que dera o nome Lumini Sumus Dionisius enquanto misturava sais e ácidos em busca do molho perfeito para envenenar o faisão a ser servido ao Sacro Imperador. Logo que toma ciência de seus efeitos, desiste da empreitada: “quem quer saber de coroas quando descobriu o sentido da vida?” escreveu.

Não descreve o instrumental utilizado nem se conhece como encontrou condições pra trabalhar com tais substâncias artificiais à época. Tomando os pergaminhos como um diário, descreve os efeitos alucinógenos em detalhe comparando-os aos do vinho mais forte de que nem se teve notícia. Wilhelm ousa dizer que ninguém pode se afirmar vivo sem que tenha provado de sua criação. A tal momento do texto, Bullevard afirma-se Deus.

No fim do último pergaminho, após a tentativa de descrição de uma experiência sinestésica, lê-se, com dificuldade, uma nota rabiscada em letra diversa de alguém que se diz o único que o acompanhou até o último momento: "Friedrich, com o pó da vida, viveu tanto que morreu em três anos a contar de sua grande descoberta, virgem e com duas moedas no bolso." Curioso é que seu cadáver estampava, apesar dos pesares, um sorriso de canto a outro da boca.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Cel. Mostarda, em Honduras, com um tanque e dois fuzis.

Entre Mostarda e Marinho, não se contavam dois anos de diferença. E, na realidade, nem importava quem nascera primeiro (só por curiosidade: o mais velho era Marinho). Apesar da amizade, sempre competiam por tudo: o triciclo mais rápido, a bola mais cheia, a verdade mais verdadeira, a namorada mais bonita. Por sinal, em se tratando de mulheres, simplesmente vencia quem conseguia uma namorada, algo tão complicado pros dois que exigir beleza era quase absurdo.
Foi num domingo, quando já eram crescidos, que Mostarda e Marinho voltaram a entrar em campo, num déjà vu da juventude. Ah, por isso sempre largaram tudo: futebol era do que mais gostavam. As esposas e as crianças também se faziam presentes, mas apenas na torcida – nenhum era pouco machista o suficiente pra ver “seu rabo de saia” correndo atrás de uma bola. Não era estranho que tivessem preferências, gostos e visões comuns: haviam sido criados praticamente juntos. Na realidade, Marinho e Mostarda foram quase irmãos até a maioridade do mais novo, quando foi estudar na Escola Superior de Guerra. Marinho permaneceu em casa, na fazenda do pai, posto a herança e a continuidade dos negócios serem responsabilidade do filho do fazendeiro. E ainda se estivessem juntos, não poderiam continuar na mesma boa vida de antes: os deveres de um herdeiro de latifundiário eram muitos, inclusive o de não manter intimidades com subordinados. Portanto, melhor Mostarda ter seguido a carreira militar que, com a ajuda do padrinho fazendeiro, fez ser assunta à patente de Coronel. E, de repente, após tanto tempo, Cel. Mostarda e Sr. Marinho se reencontram e marcam uma partida de futebol num estádio a que o primeiro tinha acesso na capital. Se eles ainda se conhecessem, talvez preferissem haver permanecido distante...
Um latifundiário e um coronel jogando bola juntos, no mesmo time, tinha que dar errado: egos e autoridades demais pra somente quatro linhas. O primeiro pediu, logo, a faixa de capitão e, como se o segundo não gostasse, propôs-se uma votação entre os jogadores em campo, que o fazendeiro venceu com simpatia e alguma facilidade. O militar, contrariado, foi obrigado a nada além de aceitar. Teve início a partida e, ao longo do primeiro tempo, as animosidades iniciais pareceram dispersar-se com a alegria pelo único gol. Apenas no fim do segundo, quando já escurecia e o adversário comemorava um pênalti, veio abaixo o mundo e levou, consigo, a amizade apenas reiniciada:
O militar ainda enciumado culpou o “amigo” pelo pênalti, por haver sido um capitão irresponsável ao cometer a falta dentro da área àquela altura da partida. O outro respondeu ter dado o sangue pelo time e não era justo que seu “empregadinho” lhe falasse naquele tom. O Coronel já expelia fumaça pelas orelhas quando o árbitro se aproximou e mostrou o cartão vermelho pro fazendeiro, expulsando-o pela falta cometida. Este, a princípio, pareceu pasmo com a atitude, mas se encaminhou para a lateral do campo. O milico, sentindo-se vingado, deu-lhe as costas prometendo que nunca mais o procuraria quando escutou os gritos do outro lado: não é que o maldito conseguira apoio de alguns outros jogadores e se aproximava do juiz! Pelo visto, ficara realmente insatisfeito com sua decisão. Mostarda, porém, foi mais rápido ao se colocar na sua frente na tentativa de impedir-lhe a passagem. Marinho, de sua parte, mandava-o sair, dizendo que nada faria senão discutir a legitimidade da punição, somente discutir.
Mostarda, porém, era Coronel e militares não acreditam em papinho de “somente discutir”. Na verdade, ele nem acreditava existir essas coisas de puro palavreado. E respondeu que com juiz não se discute – não, também, que com isso concordasse, mas era a melhor justificativa pra tirar Marinho da partida de uma vez por todas. Usando da força devida a qualquer aquartelado, o Cel. Mostarda partiu pra cima do Sr. Marinho, a fim de obrigá-lo a sair e neutralizar seus partidários. Largou-o à margem do campo, sem a braçadeira de capitão.
A partida foi reiniciada nas condições possíveis de ansiedade, temperatura e pressão. Os dois times se estranharam muito e até os jogadores de ambos não pareciam à vontade. O empate foi marcado e Mostarda deu graças que o jogo estava perto do fim. E, bem durante a desanimada comemoração do gol, o fazendeiro surpreendeu reaparecendo nas quatro linhas e afirmando-se como único eleito pra ser capitão: podia até sair, mas levaria consigo a braçadeira.
Os jogadores se dividiram e Mostarda, sem muito saber como proceder, correu pra junto do árbitro que, numa atitude inédita, acionou a polícia pra tirar de campo o atleta arredio. Marinho foi arrastado pra fora ao som de gritos enfurecidos de que não acatava decisão tão absurda. A normalidade parecia até restabelecida pros três minutos de partida ainda restantes, apesar dos jogadores terem ânimos ainda exaltados e, aqui e acolá, escutarem-se os cochichos pró e contra o coronel ou o fazendeiro.
Chegada a confirmação de que Marinho estava trancado numa sala prestando depoimento, o juiz reiniciou a partida. Apesar do apito tremendo no compasso da mão, tentava se convencer de que, em dois minutos, nada de mais grave haveria de acontecer. Ele, porém, esqueceu-se de fitar o rosto de Mostarda, tenso como corda de arco prestes a disparar. A testa do militar estava encharcada e ele não parava de tentar alargar a gola já bastante frouxa da camisa. Não estava bem, de certeza. O ar parecia faltar-lhe. A habilidade parecia faltar-lhe. O bom senso então... com certeza não o acompanhava – não mais –, o que é um problema ainda maior em se tratando de alguém com noções rígidas de hierarquia e obediência, sobretudo quando fora do quartel.
A bola nas entrelinhas de alguma meia-lua, o coronel apressou o passo, derrubou o atacante que com ela avançava pro gol, tomou-a em mãos e correndo, como um jogador de rúgbi, foi à trave adversária colocar pra dentro da barra o goleiro, a bola e ele próprio. O árbitro, estupefato, aproximou-se a fim de lhe falar e recebeu dois tapinhas nas costas seguidos das palavras em clássico tom milico-obsessivo: “foi melhor assim, meu caro. Foi necessário pra manter a ordem.”
Por ironia do destino, a bola murchou quando dentro do gol, o relógio apitou o fim do jogo e o céu fez cair um dilúvio: tudo ao mesmo tempo. O árbitro, então, irritado até consigo, empurrou a mão do coronel pra fora de suas costas, atirou longe o apito e deixou o campo esperneando: “é o que dá militares fora do quartel no comando de qualquer coisa: mesmo quando estão com a razão, eles não sabem jogar”.


...


É, militar é militar: e o Coronel Mostarda... esse, com certeza, não sabia brincar!

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Impassable night



As vozes se calavam acompanhando o nível da luz que diminuía progressivamente. No início, a dúvida fazia o burburinho correr solto pela platéia, mas, agora, a ansiedade e, sobretudo, o desejo de que fosse verdade, de que ele realmente desse meia volta e se encaminhasse ao palco pra tocar, tornava o silêncio quase irresistível. E ele voltou e quando as 4 cordas do cavaquinho começaram a vibrar eu esqueci até de respirar, porque a vontade de ouvi-lo era maior.
A luz de fundo era azul e aquele tom de azul, de alguma forma, deixava escuro todo o teatro, com exceção dele, do cantor – ou, ao menos, assim parecia pra quem somente podia focá-lo. E não havia viv’alma no recinto que prestasse atenção em algo além: os namorados desataram as mãos, os solteiros sentiam-se não mais sós, os amigos eram íntimos o suficiente pra mandarem o outro se calar. Todos se focavam no azul do qual apenas emergia a figura de Zach Condon com o cavaco em punho.
Foi uma das apresentações de palco mais incríveis de que já tive notícia esse show de Beirut. Pra mim foi e, sinceramente, importa pouco que outros o desdigam: a meu ver – e ouvir – foi incrível! A simpatia espraiada não somente no tom de voz, na tentativa de falar o português, no sorriso recorrente dos cinco integrantes que aqui vieram tocar, mas na peculiar presença de palco, corpo e espírito demonstrada em cada gesto; a empolgação dos risos, pulos e das desafinadas; os brindes muitos – saúde! – ao longo da apresentação; a habitualidade do “tóca Rraú”; a vontade que demonstravam de ocupar aquele espaço tão à vontade quanto o faziam. Tudo criava uma intimidade com os ouvintes que nem os gritos mais empolgados dos próprios expectadores podiam quebrar. Pelo contrário, as vozes eram fortes por desejarem se aproximar mais do palco de onde vinha aquela música – ainda que através de gritos.
Uma noite pra entrar na história! Na minha história, na de meus amigos e amigas e de tantos e tantas mais, quem sabe?! Na história daquela garota de vestido vermelho: não lhe sei o nome e não me cabe saber. Nem a idade, o registro geral, o número do sapato ou o que aprecia, seus gostos. Digo, um deles eu sei – e é importante saber: ela gosta de Beirut. A ponto de subir no palco ao fim do show, quando a banda já havia saído e retornado (ao som de “palmas e gritinhos frenéticos” de “mais um, mais um”) e partia em definitivo, driblar a segurança e conseguir entregar uma rosa e falar algo no ouvido de Zach, do cantor, algo que me fez merecedor de ouvi-lo uma vez mais e, ela, merecedora de um beijo seu. Se eu a conhecesse ou estivesse próximo, também um meu e de todos os que se sentiram agraciados com a música extra. E não qualquer uma: não sei o que ela lhe falou ao ouvido naqueles poucos segundos em que teve acesso à sua atenção, mas o que escutamos quando ele, desta vez sozinho no palco, tomou o cavaquinho e começou a tocar foi incrível. Penalty, the Penalty! Minha música predileta da banda – e, se não fosse, teria passado a ser. À garota, deixo meus mais sinceros agradecimentos, pois não preciso saber quais suas palavras pra me encantar com o resultado de sua coragem.
Impassable night. Impassable night! Não impossível, porém, bem como eles cantam (ou como eu prefiro entender), a noite que jamais há de passar. Não pra mim, não praquela garota. A noite dos sonhos, a noite da vida. “A noite mais amável que o sol nascente/ A noite que uniu o amante ao ser amado” (livre tradução), como diria São João da Cruz. Sem menosprezar, ao utilizá-lo aqui, o poema do santo; pelo contrário: o encontro que houve àquela noite de 18 de setembro foi místico. Perguntem à garota. Perguntem do beijo no seu rosto – será que ela já teve coragem de lavá-lo? Perguntem a mim e aos outros, todos, que nos fizemos presentes: perguntem sobre “a pena” de ter que ouvir uma outra música. Uma em especial. A mais bela! Ainda não tocada ao vivo no Brasil. The Penalty foi o resultado da soma entre o ímpeto de uma garota e o encanto de todos os pares de ávidos olhos, de cada um na platéia.
Ouvimos Zach Condon tocar e cantar, sozinho no palco, a última música. Ao contrário do ocorrido nas anteriores, um suspiro além de sua voz e do cavaco não se escutava. Ou, ao menos, eu não o fazia, pois, apesar do barulho, estava tão extasiado com tudo que somente o que a luz azul me indicava ver parecia válido de ser fitado. Imagino, então, a garota do beijo, de vestido, a da coragem: à essa altura, devia estar estupefata demais até pra enxergar. Mas, sinceramente, não importa: ela ganhara o beijo, nós, a música, e, enfim, no silêncio audível da platéia, como diz S. João da Cruz, “lá, descansam entre os lírios” (livre tradução): ela, nós e Beirut, a arte que nos deixou órfãos de seu encanto após aquele momento. Único!

sábado, 19 de setembro de 2009

Nesta esquina

Mais ou menos assim: “(...) quem cai nas ruas ou se droga ou vai escrever”. Sábias palavras!
Foi um ex-morador de rua quem o disse. Hoje, graduando. Uma situação que os mais arraigados às tradições acadêmicas poderiam estranhar: palavras geniais da boca de um pedinte? Sócrates, o barbudo, que tinha na polis seu universo – e não numa universidade sua vida – desenvolveu um método de investigação filosófica (chamado maiêutica) através do qual, com ironias e provocações, foi capaz de fazer um escravo pouco instruído deduzir o famoso teorema de Pitágoras. Imaginem até onde não poderia levar um morador de rua com a perspicácia desse!
Tive uma professora de Literatura que afirmava ser Machado de Assis um gênio porque podia contar uma vida numa frase . E, se são sábias as palavras – e apenas nós é que nem sempre as usamos da maneira apropriada –, o potencial de um morador de rua que apresente os melhores termos na forma mais que certa pra expressar uma ideia e tanto é imenso. Será que minha professora concordaria?
Talvez nem todos se dêem conta da grande sacada da frase lá no início. De repente, uma comparação entre a literatura e um punhado de drogas pode fazer sentido apenas pra mim. E pros que sentem e pensam como eu? Pros viciados em letras, como eu, pode ser. Pros apaixonados. Contudo, pra todos, não sei.
Dizer que alucinógenos e estimulantes artificiais se comparam à literatura não é absurdo. E não pela quantidade de escritores e escritoras que se drogaram ao longo dos séculos. Beberrões, fumantes compulsivos, fiéis frequentadores das terrae cannabis: dá pra pensar em Rimbaud sem uma garrafa de vinho sob o braço? Em Nelson Rodrigues sem a fumaça do cigarro inebriando à frente da máquina de escrever? Eu não consigo. E ainda nem por isso se faz visível a correspondência. Ou não: tantos artistas buscando a literatura e as drogas ao mesmo tempo, será mesmo que esperavam, de cada qual, uma coisa diferente? Ambas são vícios, afinal, são a mentira de um mundo impalpável capaz de justificar, se não toda a vida, pelo menos um sorriso em determinado momento. Fala-se na altivez das artes e na decadência das drogas: apesar do caminho diverso e particular de cada uma, através de ambas se busca o prazer, o fantástico. Talvez se possa dizer que a fantasia seja mais perene na arte que nas drogas. Porém não nos vícios, pois vícios as duas são. A dúvida é de até que ponto se pode alcançar o prazer pela alteração de simples reações metabólicas e hormonais – pelas drogas. Afinal, a alma é propriamente habitante do fantástico, enquanto o corpo... bom, Orfeu desafiou a fantasia dos mitos ao entrar no Erebo, o mundo dos mortos e imprimir suas pegadas no chão do reino de Hades. Voltou sem Perséfone, sua amada que ele fora buscar, e com uma amargura no peito que lhe calou a lira e, no fim, levou-o à desgraça da própria morte.
Apesar dessa comparação entre as letras e os vícios tóxicos – e mesmo por ela –, não se podem ignorar os que escrevem, dedicando-se à composição da beleza pela palavra, à gênese literária sem ter nas drogas outros prazeres e mundos paralelos. Cada qual, porém, há de reagir da própria forma. Rilke tinha a circunstancialidade das variadas pátrias que lhe serviam como morada – sempre provisórias. Bach se enfurnava nas Igrejas onde transcender parece mais provável. Não deixa de ser uma maneira de criar seus mundos nos espaços novos, desconhecidos ou, pelo menos, que não são parte de seus hábitos.
Se há também os que fazem da literatura sua própria droga, seu fantástico de tamanha grandeza que, praticamente sozinho, já poderia justificar a vida, esses merecem extrema admiração. Entregam-se à experimentação da arte com toda a alma e paixão, sem precisar de putas ou amantes com que “pular a cerca” quando estiverem enfadados da mesma esposa, dos mesmos acordes, das molduras, das mesmas páginas. Não cansam da arte. Esses, como o então morador de rua, que viu na fantasia ofertada pela literatura e pelas drogas a justificativa da vida que lhe restava a viver. Da nova vida. E que, enfim, numa escolha entre só duas opções, foi capaz de intuir e decidir: eu, habitante desta esquina da vida, sem teto além do céu, sem água além do rio, sem fome além da fome, eu prefiro as letras.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Destino

E ali estamos
E assim ficamos:
pés juntos, lábios unidos,
medo cerrando os olhos,
mãos calando ouvidos.
De joelhos,
se escuta uma prece ao destino:

“destino, destino meu,
existe alguém que mais te anseie
do que eu?”

Destino II

O mundo passa rápido à nossa frente.
As flores nascem,
as flores murcham
e nós, sem mover uma pétala,
pedimos ao futuro que as conserve.

Mas de que isso importa?
O presente passou,
a flor se foi,
o tempo se foi:
Pois tempo não tem piedade, tem hora
...
mas flores não têm hora, só o agora.

domingo, 30 de agosto de 2009

Ressaca de Vida

O mundo gira. Desde que o mundo é mundo, ele gira. E até hoje, quando não se tem mais certeza do seu (deixar de) ser, ele ainda gira. E só porque ele gira há os dias e as noites – ou, pelo menos, foi o que me ensinaram na escola. Dia, noite, dia noite... lembro um filme que vi lá, na escola, numa aula de francês, em que um cavaleiro e seu escudeiro viajavam da Idade Média aos dias de hoje – no caso, de seis ou sete anos atrás. O filme não era bom, e isso pouco importava: enquanto fosse falado em francês, cumpria sua função social. De qualquer forma não era tão ruim a ponto de uma ou outra cena não nos fazer rir. Numa dessas, o escudeiro, deslumbrado com uma lâmpada elétrica, repetia enquanto a apagava e acendia: “nuit, jour, nuit, jour”. E ele estava tão absorto, tão entretido com aquela novidade que somente à força pode ser retirado da sala. Por sua vontade, continuaria ali – quem sabe por quanto tempo? – naquele “noite, dia, noite, dia”.
Sol e Lua dividindo 24 horas e, no fim, o que realmente parece importar são aqueles poucos instantes em que Lua e Sol são ofuscados pela beleza da vida. Não sei se é o ímpeto ariano que me leva a fazê-lo mas, quando me perguntam sobre meu dia, não costumo destacar o que seja habitual. Se digo que foi ótimo (ou péssimo), não é por haver acordado na mesma hora de sempre, nem porque minha escova de dentes estava onde a encontro toda manhã. Alguma coisa – diferente – acontece. Não precisa ser grande, nem sequer muito, precisa, apenas, ser singular. Mesmo que circunstancialmente, mas singular. Como cruzar a Ipiranga e a Av. São João, como um dos prazeres de Amélie, enterrar a mão num saco de feijão cru, ou encontrar a beleza caminhando pela rua num rosto de mulher. Você não a segue, não precisa tê-la consigo, mas o simples fato de a haver encontrado já te faz mais contente. Pode até tratar-se de um acontecimento de maiores proporções, como ficar rico num sorteio de loteria... me pergunto, porém, se rever o sorriso de quem sentimos falta não seria mais intenso ainda? Na primeira vez em que conversamos com minha irmã que viajara, por exemplo, o mundo podia explodir e eu nem perceberia, desde que o computador e a internet permanecessem funcionando. Seu sorriso nos justificou todo aquele dia, meu e de minha família. Pra que se encerrasse a ligação, quase foi necessário também usar de força: estávamos tão encantados em revê-la quanto uma criança que descobre o mundo, como um escudeiro medieval a quem se dá o poder transcendental de “fazer” o dia e a noite através de um interruptor.
E, assim, seguimos. “Nuit, jour, nuit, jour”. “Terça foi o dia da prova. Quarta, do jogo e do almoço na casa de vovó. Sexta, foi a festa em que a encontrei. Sábado, a primeira noite em que saímos”. E, com prova, jogo, almoço, festa e, sobretudo, com um novo amor, não há Sol nem Lua que possam competir. O mundo vai girar da mesma forma, mas quem se importa? Quem percebe que gira o mundo enquanto há tanto pra se viver? “Noite, dia, noite, dia”, a intensidade dos momentos é tão maior...
No entanto, bem como grande, essa intensidade termina por se fazer pesada. E como incrível, torna-se fatigante. É que há vezes em que simplesmente não precisamos de justificativas. “Es muss sein!” – “tem de ser assim!”. Kundera, em A insustentável leveza do ser, apresenta as obrigações de que não podemos nos furtar, as imposições categóricas que o dia e suas circunstâncias nos colocam, como peso. Às vezes, contudo, apenas dizer “porque Deus assim quis”, “foi o destino” ou “Es muss sein!” pode soar leve no peito tanto quanto aos ouvidos. Porque, nesses momentos, a beleza da vida já brilhou forte a ponto de ofuscar Sol e Lua, mas também de incandescer nossos olhos. Que o diga quem já sofreu por amor não correspondido!
E, de repente, ficamos assim repletos de tanta vida. Cheios de tanta vida. Saturados dessa vida toda! Os momentos que não se restringem ao cotidiano podem ser poucos, mas são intensos a ponto de nos levar à exaustão. Viver cansa! Sobretudo quando nada acontece da forma desejada, tudo parece pesar ainda mais. Enquanto embriagados na sua beleza, cada momento de vida é a redenção da felicidade. Até que o mundo gira, e, “noite, dia, noite, dia”, chega um novo Sol e uma outra Lua e, ressacados, os olhos se abrem e a boca repete: é porque tem de ser!
E assim, ressacados de vida, queremos nos esconder no próprio giro do mundo a fim de que ninguém venha a saber de nós. Que melhor esconderijo haveria? O mundo ainda gira – sempre gira – mas nisso ninguém presta atenção quando há intensidade nos momentos pra justificar a vida. Há dias, porém, em que justificativas somente não importam...
Daí, o que fazer? Com um par de tênis ou até descalços, os pés apressam o passo. Corremos por que? Pra que? E vem Forrest e pergunta por que tudo precisa de uma razão, de uma justificativa. Devemos correr, isso basta. E corremos porque basta, porque quem corre se basta. Óbvio que há outros remédios pra curar uma boa ressaca de vida, mas a simplicidade da corrida é significativa em si mesma: não se precisa de nada externo ao corpo pra correr. E, quando corremos, nem lembramos que o mundo gira, nem que vivemos ou deixamos de viver, pois vivemos em plenitude: a vida de quem corre parece simples, porque é plena através do ato mais leve que pode haver – apenas correr.
Esse é o remédio pra uma ressaca de vida: a vida em plenitude, mas sem o peso de sua beleza.
“Es muss sein!”: e o mundo continua a girar.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Ringraziamento

Estranho como a eternidade dos momentos não pode ser medida em tempo. Ainda porque, se pudesse ser medida, não seria eterna. E nós, tão humanos, nunca fomos muito afeitos ao que não tem fim. Todos temem a morte, mas nos perguntem quem preferiria jamais morrer? Talvez as crianças o quisessem. Mas essas não contam: as crianças sabem viver. Crianças não temem a morte, por isso não a desejam - ou não a desejam, por isso não a temem? A morte é uma fronteira de segurança, o fim previsto, "a única certeza da vida". Crianças não precisam de certezas além do momento presente. Os momentos das crianças sempre são eternos, por serem sempre presentes. A vida é monopólio do presente. E só ao entendermos isso, podemos ignorar passado e futuro e viver a eternidade, sem restringir ao tempo nossa existência. Como as crianças: elas, sim, entendem.
Eu não era mais criança. Tinha por volta de 17 anos – acho. E, portanto, já poucos momentos eu percebia como eternos, como não restritos ao tempo. “Aula disso às tantas, daquilo às quantas; estudar pra isso e pr'aquilo mais; fazer assim; levar tanto; pra comer e dormir se arruma tempo; corre menino que tá chegando o vestibular"... ufa! Bom que Silvia chegou primeiro. Lá estava ela, perdida no aeroporto, com uma mala amarela enorme. Santa mala: através de sua cor tão peculiar encontramos Silvia.
Tão pouco tempo estiveram conosco - ela e sua mala. Um fim de semana. Algumas horas a mais, talvez... e daí?! E se foi menos tempo, menos dias? E se apenas a vimos no aeroporto, ou nem isso, se eu tiver encontrado com uma italiana qualquer, ou visto uma mala amarela passeando no saguão ou... e se eu apenas sonhei que uma italiana nos visitava? Não, sonho sei que não foi. Através de um intercâmbio de medicina em que minha irmã se inscrevera, Silvia esteve conosco, mas não vou dizer por quanto tempo. Não seria justo, pois foi ela quem me fez reaprender que os momentos são belos por serem da alçada da vida, não do tempo.
Eu nem falava italiano. Entendi pouquíssimo do que Silvia disse àqueles dias, a não ser quando meu pai se punha a traduzir. Silvia, por sua vez, se foi sem aprender mais que "bom dia" e "obrigada" em português. Logo, foi somente através de meu pai que pude saber do e_mail enviado por ela e da parte em que falava de/para mim.
Em meio às tribulações dos ponteiros do relógio, jamais pensei que ela teria feito uma leitura tão precisa de mim. E, no e_mail, era exatamente disso que ela falava, do tempo escasso e da minha paixão maior – pela literatura. Pra Vítor, Silvia escreveu:

"(...)e dice a lui che non deve mai dimenticare il suo pezzo di giardino."

Não sei se ela o disse com essas palavras exatas. Mas a exatidão das palavras é o que menos importa: nem italiano eu sabia! Sabia que ela falava da vida, de sua beleza e de como não se restringia ao tempo. Falava dos momentos, meus momentos, do que realmente importa. Dizia pra eu "jamais esquecer meu pedaço de jardim", meu resquício de infância, a parte da vida em que eu podia viver, em que meus momentos não se limitavam pelos ponteiros do relógio.
Daí, passei a escrever.

Grazie, Silvia. Grazie mille!