domingo, 30 de agosto de 2009

Ressaca de Vida

O mundo gira. Desde que o mundo é mundo, ele gira. E até hoje, quando não se tem mais certeza do seu (deixar de) ser, ele ainda gira. E só porque ele gira há os dias e as noites – ou, pelo menos, foi o que me ensinaram na escola. Dia, noite, dia noite... lembro um filme que vi lá, na escola, numa aula de francês, em que um cavaleiro e seu escudeiro viajavam da Idade Média aos dias de hoje – no caso, de seis ou sete anos atrás. O filme não era bom, e isso pouco importava: enquanto fosse falado em francês, cumpria sua função social. De qualquer forma não era tão ruim a ponto de uma ou outra cena não nos fazer rir. Numa dessas, o escudeiro, deslumbrado com uma lâmpada elétrica, repetia enquanto a apagava e acendia: “nuit, jour, nuit, jour”. E ele estava tão absorto, tão entretido com aquela novidade que somente à força pode ser retirado da sala. Por sua vontade, continuaria ali – quem sabe por quanto tempo? – naquele “noite, dia, noite, dia”.
Sol e Lua dividindo 24 horas e, no fim, o que realmente parece importar são aqueles poucos instantes em que Lua e Sol são ofuscados pela beleza da vida. Não sei se é o ímpeto ariano que me leva a fazê-lo mas, quando me perguntam sobre meu dia, não costumo destacar o que seja habitual. Se digo que foi ótimo (ou péssimo), não é por haver acordado na mesma hora de sempre, nem porque minha escova de dentes estava onde a encontro toda manhã. Alguma coisa – diferente – acontece. Não precisa ser grande, nem sequer muito, precisa, apenas, ser singular. Mesmo que circunstancialmente, mas singular. Como cruzar a Ipiranga e a Av. São João, como um dos prazeres de Amélie, enterrar a mão num saco de feijão cru, ou encontrar a beleza caminhando pela rua num rosto de mulher. Você não a segue, não precisa tê-la consigo, mas o simples fato de a haver encontrado já te faz mais contente. Pode até tratar-se de um acontecimento de maiores proporções, como ficar rico num sorteio de loteria... me pergunto, porém, se rever o sorriso de quem sentimos falta não seria mais intenso ainda? Na primeira vez em que conversamos com minha irmã que viajara, por exemplo, o mundo podia explodir e eu nem perceberia, desde que o computador e a internet permanecessem funcionando. Seu sorriso nos justificou todo aquele dia, meu e de minha família. Pra que se encerrasse a ligação, quase foi necessário também usar de força: estávamos tão encantados em revê-la quanto uma criança que descobre o mundo, como um escudeiro medieval a quem se dá o poder transcendental de “fazer” o dia e a noite através de um interruptor.
E, assim, seguimos. “Nuit, jour, nuit, jour”. “Terça foi o dia da prova. Quarta, do jogo e do almoço na casa de vovó. Sexta, foi a festa em que a encontrei. Sábado, a primeira noite em que saímos”. E, com prova, jogo, almoço, festa e, sobretudo, com um novo amor, não há Sol nem Lua que possam competir. O mundo vai girar da mesma forma, mas quem se importa? Quem percebe que gira o mundo enquanto há tanto pra se viver? “Noite, dia, noite, dia”, a intensidade dos momentos é tão maior...
No entanto, bem como grande, essa intensidade termina por se fazer pesada. E como incrível, torna-se fatigante. É que há vezes em que simplesmente não precisamos de justificativas. “Es muss sein!” – “tem de ser assim!”. Kundera, em A insustentável leveza do ser, apresenta as obrigações de que não podemos nos furtar, as imposições categóricas que o dia e suas circunstâncias nos colocam, como peso. Às vezes, contudo, apenas dizer “porque Deus assim quis”, “foi o destino” ou “Es muss sein!” pode soar leve no peito tanto quanto aos ouvidos. Porque, nesses momentos, a beleza da vida já brilhou forte a ponto de ofuscar Sol e Lua, mas também de incandescer nossos olhos. Que o diga quem já sofreu por amor não correspondido!
E, de repente, ficamos assim repletos de tanta vida. Cheios de tanta vida. Saturados dessa vida toda! Os momentos que não se restringem ao cotidiano podem ser poucos, mas são intensos a ponto de nos levar à exaustão. Viver cansa! Sobretudo quando nada acontece da forma desejada, tudo parece pesar ainda mais. Enquanto embriagados na sua beleza, cada momento de vida é a redenção da felicidade. Até que o mundo gira, e, “noite, dia, noite, dia”, chega um novo Sol e uma outra Lua e, ressacados, os olhos se abrem e a boca repete: é porque tem de ser!
E assim, ressacados de vida, queremos nos esconder no próprio giro do mundo a fim de que ninguém venha a saber de nós. Que melhor esconderijo haveria? O mundo ainda gira – sempre gira – mas nisso ninguém presta atenção quando há intensidade nos momentos pra justificar a vida. Há dias, porém, em que justificativas somente não importam...
Daí, o que fazer? Com um par de tênis ou até descalços, os pés apressam o passo. Corremos por que? Pra que? E vem Forrest e pergunta por que tudo precisa de uma razão, de uma justificativa. Devemos correr, isso basta. E corremos porque basta, porque quem corre se basta. Óbvio que há outros remédios pra curar uma boa ressaca de vida, mas a simplicidade da corrida é significativa em si mesma: não se precisa de nada externo ao corpo pra correr. E, quando corremos, nem lembramos que o mundo gira, nem que vivemos ou deixamos de viver, pois vivemos em plenitude: a vida de quem corre parece simples, porque é plena através do ato mais leve que pode haver – apenas correr.
Esse é o remédio pra uma ressaca de vida: a vida em plenitude, mas sem o peso de sua beleza.
“Es muss sein!”: e o mundo continua a girar.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Ringraziamento

Estranho como a eternidade dos momentos não pode ser medida em tempo. Ainda porque, se pudesse ser medida, não seria eterna. E nós, tão humanos, nunca fomos muito afeitos ao que não tem fim. Todos temem a morte, mas nos perguntem quem preferiria jamais morrer? Talvez as crianças o quisessem. Mas essas não contam: as crianças sabem viver. Crianças não temem a morte, por isso não a desejam - ou não a desejam, por isso não a temem? A morte é uma fronteira de segurança, o fim previsto, "a única certeza da vida". Crianças não precisam de certezas além do momento presente. Os momentos das crianças sempre são eternos, por serem sempre presentes. A vida é monopólio do presente. E só ao entendermos isso, podemos ignorar passado e futuro e viver a eternidade, sem restringir ao tempo nossa existência. Como as crianças: elas, sim, entendem.
Eu não era mais criança. Tinha por volta de 17 anos – acho. E, portanto, já poucos momentos eu percebia como eternos, como não restritos ao tempo. “Aula disso às tantas, daquilo às quantas; estudar pra isso e pr'aquilo mais; fazer assim; levar tanto; pra comer e dormir se arruma tempo; corre menino que tá chegando o vestibular"... ufa! Bom que Silvia chegou primeiro. Lá estava ela, perdida no aeroporto, com uma mala amarela enorme. Santa mala: através de sua cor tão peculiar encontramos Silvia.
Tão pouco tempo estiveram conosco - ela e sua mala. Um fim de semana. Algumas horas a mais, talvez... e daí?! E se foi menos tempo, menos dias? E se apenas a vimos no aeroporto, ou nem isso, se eu tiver encontrado com uma italiana qualquer, ou visto uma mala amarela passeando no saguão ou... e se eu apenas sonhei que uma italiana nos visitava? Não, sonho sei que não foi. Através de um intercâmbio de medicina em que minha irmã se inscrevera, Silvia esteve conosco, mas não vou dizer por quanto tempo. Não seria justo, pois foi ela quem me fez reaprender que os momentos são belos por serem da alçada da vida, não do tempo.
Eu nem falava italiano. Entendi pouquíssimo do que Silvia disse àqueles dias, a não ser quando meu pai se punha a traduzir. Silvia, por sua vez, se foi sem aprender mais que "bom dia" e "obrigada" em português. Logo, foi somente através de meu pai que pude saber do e_mail enviado por ela e da parte em que falava de/para mim.
Em meio às tribulações dos ponteiros do relógio, jamais pensei que ela teria feito uma leitura tão precisa de mim. E, no e_mail, era exatamente disso que ela falava, do tempo escasso e da minha paixão maior – pela literatura. Pra Vítor, Silvia escreveu:

"(...)e dice a lui che non deve mai dimenticare il suo pezzo di giardino."

Não sei se ela o disse com essas palavras exatas. Mas a exatidão das palavras é o que menos importa: nem italiano eu sabia! Sabia que ela falava da vida, de sua beleza e de como não se restringia ao tempo. Falava dos momentos, meus momentos, do que realmente importa. Dizia pra eu "jamais esquecer meu pedaço de jardim", meu resquício de infância, a parte da vida em que eu podia viver, em que meus momentos não se limitavam pelos ponteiros do relógio.
Daí, passei a escrever.

Grazie, Silvia. Grazie mille!