quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Diplomacia brasileira

– A bandeira, agora, no chão!


Apesar da qualidade do tradutor, as coronhadas que davam na nuca eram compreendidas por Ricardo em muito mais alto e bom som que qualquer palavra. Ao cair, o pano branco da bandeira foi logo manchado pela areia do chão, cuja única cobertura era um tapete. O vento soprava caverna adentro e, por mais que estivessem bem no fundo, havia momentos em que era difícil até de respirar em razão da poeira circulando no ambiente.

Falaram algo naquele árabe de sotaque estranho, e Ricardo se arrependeu de ter pago um ano de curso intensivo da língua pra que, no momento de sua execução, tudo o que pudesse compreender da fala dos seqüestradores terroristas fosse praticamente nada. Tentava não se desesperar, lembrar de um ou outro termo mágico, do tipo “shazam” ou “alakazam”, qualquer palavra que interviesse em seu socorro. Mas apenas lhe apareciam as imagens de sua mãe chorando ao receber a notícia da morte de seu filhinho jornalista. Ela bem lhe dissera que ser correspondente internacional em países em guerra civil não era uma boa escolha... mas quem disse que alguém acima dos quinze escuta o que diz a mãe?

Ricardo viajou na classe executiva, aterrissou no último dia em que funcionou o aeroporto e não temeu correr atrás de todas as informações preciosas que somente o faro certeiro de um jornalista em terra estrangeira poderia conseguir. E tanto correu e tanto encasquetou procurar todo furo em qualquer buraco, que caiu nas mãos dos terroristas sequestradores que, como não obtiveram o resgate pedido, haviam-se decidido por matá-lo. E nem bandeira branca ou credencial de imprensa surtiram nenhum efeito.

A última coisa que ouviu do tradutor antes de ser posto de joelhos pra execução foi: “você terá a honra de ser executado pelo mestre”. Ricardo vendado podia pensar somente que, se na sua frente estava o mestre, também se encontrava ali sua última chance de pedir misericórdia. E, ainda assim, não lembrava uma palavra sequer na língua estrangeira.

Quando parecia pronta a execução, alguém interrompeu e andou rápido pra junto de um Ricardo ajoelhado, vendado e cabisbaixo. Puxou a gola do casaco dele fazendo menção de tirá-lo. O que parecia ser a voz do mestre deu uma resposta em tom positivo ao mesmo tempo em que o revólver era engatilhado. Aquele casaco fora presente de sua mãe pouco antes da viagem. Ricardo havia preparado uma mala só com roupas quentes, afinal era verão, mas sua mãe disse: “ouvi que há montanhas por essas terras, quem sabe se você não vai precisar”. Agora, porém, o couro iria aconchegar o filho de outra mulher.

O homem não puxou o casaco com violência, apenas pra não danificar o tecido. Abriu-lhe o zíper até o fim e...

... os olhos arregalaram-se, pareceu engolir em seco e chocado deu um salto pra trás, caindo sentado. A voz do mestre esperneou alto em tom certo de reprovação. O homem então levantou e foi falar-lhe, a que o mestre respondeu com uma interjeição de surpresa, o primeiro termo árabe que Ricardo foi capaz de identificar: “Oh!”

Os passos do mestre foram rápidos. Aproximou-se de Ricardo, tirou-lhe a venda, entregou a arma a um comparsa, abriu seu casaco e deu de cara com a camisa da seleção brasileira de futebol, a mesma que deixara seu subordinado estupefato. O rosto carrancudo se transformou numa grande gargalhada, baixou-se pra dar dois beijos em cada bochecha do prisioneiro e pulou e bateu palmas e rodopiou pela caverna gritando empolgado feito criança:

– Brasil! Brasil! Ronaldinho! Ronaldinho!

A bandeira branca já quase soterrada pela areia que o vento trazia do deserto foi testemunha ocular da libertação de Ricardo.

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