quinta-feira, 20 de maio de 2010

Brasil, um país de tolos


Foi assustador quando meu senhor, o coronel, abriu a porta e me mandou sair. Não ele, mas a luz contínua e forte me aterrorizou. Coloquei a cabeça entre os joelhos e respondi que não iria. Ouvi seus passos se aproximando e gritei que tinha medo. Quando chegou bem perto, porém, caiu no chão ofegante. Encostei-o na parede com toda a devoção, tomei-lhe a receita da mão e corri à farmácia pra comprar o remédio.

Não contei a ninguém, nem desse episódio ou de todo o período em que ele cuidou de mim. Me mantive calada e fiel a meu guardião, o senhor que me protegia. Ensinou-me a ler, a escrever e até ser mulher, somente com ele eu fui. Me batia, mas no fundo desejava apenas que eu me comportasse, queria me mostrar como viver corretamente e com decência e, por isso, afirmava ter medo de me deixar sair do quarto. Ele sofria, mas precisava me manter trancada. No começo até questionei, mas depois o coronel mostrou como os homens podem ser crueis e como é perigoso o mundo. Até a luz do dia parecia perigosa. Por isso tive medo quando ele abriu a porta àquela manhã.

Depois de eu o salvar, ele tem me dado permissão pra sair mais e mais. Na verdade, hoje, já quase permissão não preciso pedir, só de vez em quando ouço gemer a cadeira de balanço no canto da sala e ele fala com a voz fraca, mas ainda grave e naquela posição altiva de cabeça baixa e saliva escorrendo pelo canto da boca: “comporte-se e volte logo, senão vai ser pior pra você”.

Um dia, me surpreendi com minha própria imagem refletida no vidro de uma loja (que descobri se chamar “vitrine”). Não que eu me desconhecesse, mas o único espelho do meu quarto era um pequeno e quebrado, em que mal se enxerga um rosto inteiro. Foi inevitável a comparação entre aquele corpo de mulher e a silhueta dele, velha e curvada. Ainda assim, lembrá-lo sentado no canto da sala me deu um calafrio tamanho que me fez correr pra casa.

Não sei o que aconteceria comigo aqui, na rua. O que seria de mim sem ele?! Nada. Nada sei e, o pouco que conheço foi através dele. Devo muito ao coronel, ajudou-me tanto. Hoje, percebo que talvez não fosse necessária aquela corda com ponta de ferro ou as vezes em que deixava meu rosto cheio de marcas roxas, porém era sempre certo que, logo depois, a porta se abria novamente e ele entrava no quarto com uma bolsa de gelo e começava a me fazer carinho. Às vezes, pedia pra eu tirar a roupa. Disso eu não gostava, mas se eu não o fizesse, levantava a mão pra mim e eu já estava quase nua. Tinha muito medo dele... e, pra ser sincera, continuo tendo.

Há já duas horas estou fora de casa. Nunca passei tanto tempo assim longe da proteção dele. Semana passada, vi na TV o depoimento de uma mulher que disse haver sido encarcerada por 23 anos pelo pai. Por isso estou aqui: no meu caso, foram apenas 21. Respiro fundo pra criar coragem. Sei que o que ele fez foi muito errado e, como disse a mulher na TV, deve ser responsabilizado pelos seus atos. Subo as escadas, degrau por degrau, morrendo de medo e de olhos fechados pra não enxergar ninguém que passa pelo meu lado. Abro-os quando já estou em frente à porta. Ao lado, numa placa de metal espelhado, está escrito "polícia", mas eu quase nem leio, apenas observo o reflexo do meu rosto que, de repente, se transforma no rosto do coronel. Assustada, tropeço pra trás e quase rolo escada abaixo.

Chego em casa ofegante. Com a bengala, o coronel passa da sala pro quarto. Não sei exatamente se percebeu meu desconserto, porém, antes de virar no corredor, atirou o canto do olho pra cima de mim e disse: “cuidado, menina. Cuidado”.

Corro pro quarto, apago a luz e meto a cabeça entre os joelhos. “Tudo bem, tudo bem” eu repito sem saber se acredito “agora está tudo bem; pra que, então, tentar mudar se o pior já passou?!”. Quem sabe outro dia...

dedicado às/aos torturados/as nos cárceres da ditadura militar brasileira, dos/as poucos/as corajosos/as numa sociedade covarde o suficiente pra fingir esquecer seu passado em vez de fechar-lhe as feridas.


quarta-feira, 19 de maio de 2010

Prece ao destino


Ajuda-me, excelência do tempo,

da poeira,

do asfalto,

do futuro e passado.

Perdoa-me, reverendo esperado,

pai dos que nada sabem,

guia dos que não querem saber.

Tem piedade, Senhor do acaso,

pois sem ti serei nada,

uma vida

de apenas pegadas,

angústia

e desejo

em solidão.

Sem ti,

sou o medo que desconhece,

o silêncio do espanto,

a danação do pecador.

Sem ti,

apenas o que foi;

mas nada foi,

somente é,

talvez será,

e a vida só me cabe

em igual medida

que a ti o acaso.

Sem ti

mãos atadas,

pois, se nem de mim nada sei,

sem ti

dize-me

o que seria

dos caminhos alheios

que as linhas de minha mão

hão de cruzar.

terça-feira, 18 de maio de 2010

No bar com Hades e Apolo


tsssss

‘Cerveja gelada, tem coisa melhor?’

‘Claro que há: cerveja alemã.’

‘E o que tem a ver? Não se pode gelar a alemã?’

‘Loira gelada? Hum, adoro!’

‘Morena quente, então...’

‘... nem se fala!’

‘Que tal uma agora?’

‘Loira ou morena?’

‘Ou as duas.’

‘Você sempre confundindo as coisas!’

‘E você dizendo que preto não é branco!’

‘Infinito e restrito são bastante distintos!’

‘Terra e mar, por sua vez, onde começam ou terminam?!’

‘Presente e ausente!’

‘Passado e futuro!’

‘Vivos e mortos!’

‘Dia, noite e fim de tarde!’

‘...’

‘Olimpo e inferno: você é dos 12 Deuses, Hades, mas onde habitas?!’

‘Ok, minha tarefa é claramente mais difícil.’

‘Provar o errado costuma ser mais difícil.’

‘Aham! Olha aí: certo e errado não se confundem!’

‘Choro e riso, porém, sim.’

‘Não, assim é apelação. Chora-se por dor, por perda.’

‘E pelo que se sorri?’

‘Pelo que seja oposto a dor: alegria, felicidade.’

‘Alegria e felicidade é que não são a mesma coisa.’

‘Não?’

‘Até quem não está contente e chora pode ser feliz:’

‘a mãe no parto,’

‘a criança ao nascer,’

‘um casal saudoso.’

‘Desde que é mundo o mundo, existem as oposições...’

‘... e desde que os homens surgiram, as contradições.’

‘Um brinde a eles.’

‘Saúde!’