terça-feira, 27 de outubro de 2009

Wilhelm Friedrich Boullevard

A descoberta recente dos manuscritos do Ruhr surpreendeu parte da comunidade científica ao evidenciar a sintetização da primeira droga alucinógena já no século XVII.

Segundo os escritos de Wilhelm Friedrich Bullevard, um cozinheiro franco-boêmio, ele próprio teria descoberto a droga a que dera o nome Lumini Sumus Dionisius enquanto misturava sais e ácidos em busca do molho perfeito para envenenar o faisão a ser servido ao Sacro Imperador. Logo que toma ciência de seus efeitos, desiste da empreitada: “quem quer saber de coroas quando descobriu o sentido da vida?” escreveu.

Não descreve o instrumental utilizado nem se conhece como encontrou condições pra trabalhar com tais substâncias artificiais à época. Tomando os pergaminhos como um diário, descreve os efeitos alucinógenos em detalhe comparando-os aos do vinho mais forte de que nem se teve notícia. Wilhelm ousa dizer que ninguém pode se afirmar vivo sem que tenha provado de sua criação. A tal momento do texto, Bullevard afirma-se Deus.

No fim do último pergaminho, após a tentativa de descrição de uma experiência sinestésica, lê-se, com dificuldade, uma nota rabiscada em letra diversa de alguém que se diz o único que o acompanhou até o último momento: "Friedrich, com o pó da vida, viveu tanto que morreu em três anos a contar de sua grande descoberta, virgem e com duas moedas no bolso." Curioso é que seu cadáver estampava, apesar dos pesares, um sorriso de canto a outro da boca.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Cel. Mostarda, em Honduras, com um tanque e dois fuzis.

Entre Mostarda e Marinho, não se contavam dois anos de diferença. E, na realidade, nem importava quem nascera primeiro (só por curiosidade: o mais velho era Marinho). Apesar da amizade, sempre competiam por tudo: o triciclo mais rápido, a bola mais cheia, a verdade mais verdadeira, a namorada mais bonita. Por sinal, em se tratando de mulheres, simplesmente vencia quem conseguia uma namorada, algo tão complicado pros dois que exigir beleza era quase absurdo.
Foi num domingo, quando já eram crescidos, que Mostarda e Marinho voltaram a entrar em campo, num déjà vu da juventude. Ah, por isso sempre largaram tudo: futebol era do que mais gostavam. As esposas e as crianças também se faziam presentes, mas apenas na torcida – nenhum era pouco machista o suficiente pra ver “seu rabo de saia” correndo atrás de uma bola. Não era estranho que tivessem preferências, gostos e visões comuns: haviam sido criados praticamente juntos. Na realidade, Marinho e Mostarda foram quase irmãos até a maioridade do mais novo, quando foi estudar na Escola Superior de Guerra. Marinho permaneceu em casa, na fazenda do pai, posto a herança e a continuidade dos negócios serem responsabilidade do filho do fazendeiro. E ainda se estivessem juntos, não poderiam continuar na mesma boa vida de antes: os deveres de um herdeiro de latifundiário eram muitos, inclusive o de não manter intimidades com subordinados. Portanto, melhor Mostarda ter seguido a carreira militar que, com a ajuda do padrinho fazendeiro, fez ser assunta à patente de Coronel. E, de repente, após tanto tempo, Cel. Mostarda e Sr. Marinho se reencontram e marcam uma partida de futebol num estádio a que o primeiro tinha acesso na capital. Se eles ainda se conhecessem, talvez preferissem haver permanecido distante...
Um latifundiário e um coronel jogando bola juntos, no mesmo time, tinha que dar errado: egos e autoridades demais pra somente quatro linhas. O primeiro pediu, logo, a faixa de capitão e, como se o segundo não gostasse, propôs-se uma votação entre os jogadores em campo, que o fazendeiro venceu com simpatia e alguma facilidade. O militar, contrariado, foi obrigado a nada além de aceitar. Teve início a partida e, ao longo do primeiro tempo, as animosidades iniciais pareceram dispersar-se com a alegria pelo único gol. Apenas no fim do segundo, quando já escurecia e o adversário comemorava um pênalti, veio abaixo o mundo e levou, consigo, a amizade apenas reiniciada:
O militar ainda enciumado culpou o “amigo” pelo pênalti, por haver sido um capitão irresponsável ao cometer a falta dentro da área àquela altura da partida. O outro respondeu ter dado o sangue pelo time e não era justo que seu “empregadinho” lhe falasse naquele tom. O Coronel já expelia fumaça pelas orelhas quando o árbitro se aproximou e mostrou o cartão vermelho pro fazendeiro, expulsando-o pela falta cometida. Este, a princípio, pareceu pasmo com a atitude, mas se encaminhou para a lateral do campo. O milico, sentindo-se vingado, deu-lhe as costas prometendo que nunca mais o procuraria quando escutou os gritos do outro lado: não é que o maldito conseguira apoio de alguns outros jogadores e se aproximava do juiz! Pelo visto, ficara realmente insatisfeito com sua decisão. Mostarda, porém, foi mais rápido ao se colocar na sua frente na tentativa de impedir-lhe a passagem. Marinho, de sua parte, mandava-o sair, dizendo que nada faria senão discutir a legitimidade da punição, somente discutir.
Mostarda, porém, era Coronel e militares não acreditam em papinho de “somente discutir”. Na verdade, ele nem acreditava existir essas coisas de puro palavreado. E respondeu que com juiz não se discute – não, também, que com isso concordasse, mas era a melhor justificativa pra tirar Marinho da partida de uma vez por todas. Usando da força devida a qualquer aquartelado, o Cel. Mostarda partiu pra cima do Sr. Marinho, a fim de obrigá-lo a sair e neutralizar seus partidários. Largou-o à margem do campo, sem a braçadeira de capitão.
A partida foi reiniciada nas condições possíveis de ansiedade, temperatura e pressão. Os dois times se estranharam muito e até os jogadores de ambos não pareciam à vontade. O empate foi marcado e Mostarda deu graças que o jogo estava perto do fim. E, bem durante a desanimada comemoração do gol, o fazendeiro surpreendeu reaparecendo nas quatro linhas e afirmando-se como único eleito pra ser capitão: podia até sair, mas levaria consigo a braçadeira.
Os jogadores se dividiram e Mostarda, sem muito saber como proceder, correu pra junto do árbitro que, numa atitude inédita, acionou a polícia pra tirar de campo o atleta arredio. Marinho foi arrastado pra fora ao som de gritos enfurecidos de que não acatava decisão tão absurda. A normalidade parecia até restabelecida pros três minutos de partida ainda restantes, apesar dos jogadores terem ânimos ainda exaltados e, aqui e acolá, escutarem-se os cochichos pró e contra o coronel ou o fazendeiro.
Chegada a confirmação de que Marinho estava trancado numa sala prestando depoimento, o juiz reiniciou a partida. Apesar do apito tremendo no compasso da mão, tentava se convencer de que, em dois minutos, nada de mais grave haveria de acontecer. Ele, porém, esqueceu-se de fitar o rosto de Mostarda, tenso como corda de arco prestes a disparar. A testa do militar estava encharcada e ele não parava de tentar alargar a gola já bastante frouxa da camisa. Não estava bem, de certeza. O ar parecia faltar-lhe. A habilidade parecia faltar-lhe. O bom senso então... com certeza não o acompanhava – não mais –, o que é um problema ainda maior em se tratando de alguém com noções rígidas de hierarquia e obediência, sobretudo quando fora do quartel.
A bola nas entrelinhas de alguma meia-lua, o coronel apressou o passo, derrubou o atacante que com ela avançava pro gol, tomou-a em mãos e correndo, como um jogador de rúgbi, foi à trave adversária colocar pra dentro da barra o goleiro, a bola e ele próprio. O árbitro, estupefato, aproximou-se a fim de lhe falar e recebeu dois tapinhas nas costas seguidos das palavras em clássico tom milico-obsessivo: “foi melhor assim, meu caro. Foi necessário pra manter a ordem.”
Por ironia do destino, a bola murchou quando dentro do gol, o relógio apitou o fim do jogo e o céu fez cair um dilúvio: tudo ao mesmo tempo. O árbitro, então, irritado até consigo, empurrou a mão do coronel pra fora de suas costas, atirou longe o apito e deixou o campo esperneando: “é o que dá militares fora do quartel no comando de qualquer coisa: mesmo quando estão com a razão, eles não sabem jogar”.


...


É, militar é militar: e o Coronel Mostarda... esse, com certeza, não sabia brincar!