sábado, 19 de setembro de 2009

Nesta esquina

Mais ou menos assim: “(...) quem cai nas ruas ou se droga ou vai escrever”. Sábias palavras!
Foi um ex-morador de rua quem o disse. Hoje, graduando. Uma situação que os mais arraigados às tradições acadêmicas poderiam estranhar: palavras geniais da boca de um pedinte? Sócrates, o barbudo, que tinha na polis seu universo – e não numa universidade sua vida – desenvolveu um método de investigação filosófica (chamado maiêutica) através do qual, com ironias e provocações, foi capaz de fazer um escravo pouco instruído deduzir o famoso teorema de Pitágoras. Imaginem até onde não poderia levar um morador de rua com a perspicácia desse!
Tive uma professora de Literatura que afirmava ser Machado de Assis um gênio porque podia contar uma vida numa frase . E, se são sábias as palavras – e apenas nós é que nem sempre as usamos da maneira apropriada –, o potencial de um morador de rua que apresente os melhores termos na forma mais que certa pra expressar uma ideia e tanto é imenso. Será que minha professora concordaria?
Talvez nem todos se dêem conta da grande sacada da frase lá no início. De repente, uma comparação entre a literatura e um punhado de drogas pode fazer sentido apenas pra mim. E pros que sentem e pensam como eu? Pros viciados em letras, como eu, pode ser. Pros apaixonados. Contudo, pra todos, não sei.
Dizer que alucinógenos e estimulantes artificiais se comparam à literatura não é absurdo. E não pela quantidade de escritores e escritoras que se drogaram ao longo dos séculos. Beberrões, fumantes compulsivos, fiéis frequentadores das terrae cannabis: dá pra pensar em Rimbaud sem uma garrafa de vinho sob o braço? Em Nelson Rodrigues sem a fumaça do cigarro inebriando à frente da máquina de escrever? Eu não consigo. E ainda nem por isso se faz visível a correspondência. Ou não: tantos artistas buscando a literatura e as drogas ao mesmo tempo, será mesmo que esperavam, de cada qual, uma coisa diferente? Ambas são vícios, afinal, são a mentira de um mundo impalpável capaz de justificar, se não toda a vida, pelo menos um sorriso em determinado momento. Fala-se na altivez das artes e na decadência das drogas: apesar do caminho diverso e particular de cada uma, através de ambas se busca o prazer, o fantástico. Talvez se possa dizer que a fantasia seja mais perene na arte que nas drogas. Porém não nos vícios, pois vícios as duas são. A dúvida é de até que ponto se pode alcançar o prazer pela alteração de simples reações metabólicas e hormonais – pelas drogas. Afinal, a alma é propriamente habitante do fantástico, enquanto o corpo... bom, Orfeu desafiou a fantasia dos mitos ao entrar no Erebo, o mundo dos mortos e imprimir suas pegadas no chão do reino de Hades. Voltou sem Perséfone, sua amada que ele fora buscar, e com uma amargura no peito que lhe calou a lira e, no fim, levou-o à desgraça da própria morte.
Apesar dessa comparação entre as letras e os vícios tóxicos – e mesmo por ela –, não se podem ignorar os que escrevem, dedicando-se à composição da beleza pela palavra, à gênese literária sem ter nas drogas outros prazeres e mundos paralelos. Cada qual, porém, há de reagir da própria forma. Rilke tinha a circunstancialidade das variadas pátrias que lhe serviam como morada – sempre provisórias. Bach se enfurnava nas Igrejas onde transcender parece mais provável. Não deixa de ser uma maneira de criar seus mundos nos espaços novos, desconhecidos ou, pelo menos, que não são parte de seus hábitos.
Se há também os que fazem da literatura sua própria droga, seu fantástico de tamanha grandeza que, praticamente sozinho, já poderia justificar a vida, esses merecem extrema admiração. Entregam-se à experimentação da arte com toda a alma e paixão, sem precisar de putas ou amantes com que “pular a cerca” quando estiverem enfadados da mesma esposa, dos mesmos acordes, das molduras, das mesmas páginas. Não cansam da arte. Esses, como o então morador de rua, que viu na fantasia ofertada pela literatura e pelas drogas a justificativa da vida que lhe restava a viver. Da nova vida. E que, enfim, numa escolha entre só duas opções, foi capaz de intuir e decidir: eu, habitante desta esquina da vida, sem teto além do céu, sem água além do rio, sem fome além da fome, eu prefiro as letras.

Um comentário:

  1. Vitor, vejo toda arte como tentativa de fuga da realidade (mundo externo). O homem nunca se contentou com esta. Drogas não são apenas fuga do mundo que nos cerca, senão de nosso próprio mundo interior. Enquanto a arte nos leva ao encontro de nosso próprio Eu, ainda que sob vestes fantásticas, a droga nos retira de nós mesmos. É claro que a droga em dose leve aguça nossa perspicácia, mas creio estarmos falando de extremos...no equilíbrio, tudo tende a ser bom, no fim das contas.

    abraço, velho. muito bom texto, como sempre.

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