segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Ninguém é indispensável


Acreditar que ninguém é indispensável é um ato de amor. Não sei se Lord Byron concordaria com isso porém, em caso negativo, eu lhe contaria um segredo: mesmo depois de ele morrer, o mundo não parou de girar.

Se, pra cada morte de um ser humano, outro se matasse, a população mundial não teria atingido as cifras a que chegou. E, ainda que o mundo não seja lá o lugar mais tranquilo e feliz, com certeza seria, hoje, mais sombrio e melancólico, nessas “circunstâncias suicidas”. O fato é que não é assim, a vida não é assim, pois os dias dos que ficam continuam nascendo e se pondo, ainda quando os outros se vão.

E isso vale não só pra morte do corpo, mas pra dos sentimentos, da memória, pra quando alguém parte, sai de casa, viaja pra voltar ninguém sabe quando. E os que ficam? Bom, esses, no último momento, quando em vez de obstarem a partida do outro, apenas o abraçam e beijam e desejam boa viagem, esses demonstram aí todo o seu amor.

Não há amor sem liberdade. E dizer isso não torna este texto uma cartilha pró-relacionamentos abertos, mesmo porque decidir relacionar-se ou não com alguém sem as amarras da fidelidade é um exercício, no mínimo, da liberdade de pactuar. A liberdade numa relação conjugal é bem mais ampla que o simples conceito de fidelidade. É reconhecer em quem se ama um inteiro, uma pessoa, linda exatamente por ser completa. Quem quer uma “metade” de laranja pra se completar deve começar procurando-a numa sessão de psicoterapia, pois nenhuma relação que não entre “inteiros” pode ser saudável.

Ser menos carente, tornar-se menos dependente do outro é escolher amá-lo. Reconhece-lo como ser humano completo e, nessa completude, tão encantador a ponto de nos fazer apaixonar, é deseja-lo feliz. E quando fazemos isso, só quando queremos a felicidade de alguém é que podemos iniciar a felicidade conjunta, conjugal ou não.

Prender o outro, fazer dele sua posse, portanto, faz tão pouco sentido quanto querer estar com ele sem que ele também o deseje. Ao contrário, aceitar a possibilidade sempre presente da partida, de que ele nos deixe é desejar o seu bem, posto estarmos escolhendo a sua felicidade, pois permanecemos juntos acima de tudo porque a gente tem vontade e quer um ao outro e assim somos felizes; além de ser ato de amor próprio, porque afrente de qualquer vontade alheia, colocamos o nosso desejo de sorrir e reconhecemos que, pra isso, melhor estar sozinho que com quem não nos queira bem.

Pra quem, enfim, livra-se do peso de se preocupar com a possível partida, com a possibilidade do fim, o dia costuma amanhecer mais claro. Não por maior incidência dos raios solares, mas pelo sentimento que de repente surge de ser a vida boa agora, neste instante, bem quando devemos aproveitá-la, pois o amanhã importa tão pouco quanto tudo aquilo que não nos cabe conhecer. Mais importante do que prever o futuro torna-se viver o presente. Antes de pensar na partida, aproveitar o agora, quando estamos juntos e felizes. É a leveza do verdadeiro afeto, que não demanda nomes, assinaturas ou instituições pra existir. É a tranquilidade de quem está próximo porque quer e sabe ser a mesma coisa com os que o cercam. É a vontade de ter prazer despida de receios, em meio a sorrisos, amigos e conversas fiadas, pequenos ou grandes prazeres ao longo de uma longa noite que pouco importa quando vai terminar, mais importa é que já teve início.

Se amanhã a gente ainda pode amar, hoje faço hora extra no trabalho. Mas se tudo sempre pode acabar em despedida, melhor comprar-lhe logo aquele buquê de rosas pra ver abrir-se seu sorriso lindo mais uma vez. Melhor viver agora, antes que seja tarde.

Vida

Queria que a vida fosse pra além de uma palavra. Mais que um conceito frio apenas. E mais que tão somente sonho e imaginação fértil no meio de uma aula chata. Queria que a vida cruzasse a fronteira da fantasia com a realidade, da linguagem com os fatos: devo admitir que acho muito mais gostoso beber do que simplesmente dizer “café”.

Não quero a vida emoldurada na parede numa foto bonita de cartão postal. Claro, a gente sempre pode pegar um avião e ir viver ao vivo a paisagem. Mas nem todo mundo tem condições de se aventurar até os Alpes Suíços. E desde quando isso é a tal da vida, voar por meio mundo pra chegar numas montanhas bonitinhas? Não quero uma vida bela ou feia, prefiro-a viva. Viva de tal forma que quatro letras jamais serão capazes de conceituar.

Podia até lançar aqui um manifesto pela exclusão da palavra “vida” do dicionário brasileiro. A menina, em vez de viver, sorri. O rapaz, tadinho, chora. A planta segue o sol, o cachorro corre rápido, o peixe nada, nada e não sai da água. O pássaro voa, o avião também, mas só porque tem um piloto que o comanda. A criança brinca, a mãe trabalha, o pai cozinha (família moderna, hein?) e à noite os dois fazem mais filhinhos – mas disso não convém entrar em detalhes.

Ao contrário do que se diz, as estrelas não nascem; apenas brilham bonitas no céu. Às estrelas, não tem avião que nos leve. Acho que pra elas, então, se pode abrir uma exceção: apesar de estarem mais longe que as montanhas da Suíça, estamos o mais perto delas a que se pode chegar. Pois a distância entre um par de olhos e o brilho de uma estrela se mede menos em anos-luz, mais nas emoções por ela inspiradas.

E se ninguém “vive”, a gente não precisaria mais “morrer”. Melhor seria apenas deixar de sentir, falar, correr, sorrir, comer, fazer amor etc. Com certeza o processo lingüístico e conceitual entre sair do “uga-uga” primitivo e chegar à “vida” não foi simples ou curto. E, um palpite que me veio à cabeça: talvez a gente só tenha inventado o termo “vida” quando se deu conta de que o nosso dia-a-dia agradável – ou nem tanto! – um dia acabava, terminava assim de repente. Parece até que a vida nos brotou da morte. Pois aqui eu digo sem medo: não é, então, essa a “vida” que eu quero.

Uma vida menos morte, menos conceito e mais acontecimento. Uma vida de tato e sensações, de experimentação inominada de tudo aquilo que se possa ver, ouvir, provar, vida que tanto faça se cheiro de flor ou de esgoto, desde que, mais que palavra e descrição, seja cheiro de verdade.