sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Ócio produtivo


Quando o estrangeiro chegou ao castelo, o senhor estava ocupado demais pra recebê-lo. Veio o segundo filho – o primogênito não estava em casa.


– O que quer?
– Se houvesse algum espaço pra passar a noite já...
– Sétimo quarto, terceiro corredor à esquerda.

E voltou a seus afazeres.
O estrangeiro passou três noites e dois dias dentro daquele quarto, sem que ninguém lhe viesse expulsar. Na terceira noite, apareceu o mesmo filho com quem falara.

– Apresse-se, ainda não foi embora?!
– Quero falar com seu pai.

Dali a pouco, entrou o primogênito.

– Como assim ainda não foi embora?!
– Já disse, quero falar com seu pai.

Na manhã seguinte, ao acordar, o estrangeiro viu a manta do conde sentada na poltrona ao lado da cama.

– O que lhe falta, senhor, pra partir?!
– Achei um desrespeito não me receber o senhor do castelo.
– Ora, eu tenho mais o que fazer do que perder meu tempo com um estrangeiro.
– O que seria mais importante?! Por acaso o senhor de um castelo trabalha?!
– Se eu trabalhasse, talvez houvesse ainda tempo.
– Então o que?
– Não que eu lhe deva satisfações, mas, por não ter tempo a perder, então falo.
– Pois fale.

Ele deu as costas e caminhava pra fora do quarto enquanto falava, sua voz diminuindo na medida em que se aproximava da porta.

– A maldição do espírito do mundo me força a criar sempre e continuamente. Nada posso ou faço senão criar. Por isso não me resta tempo pra esses tais trabalhos.

Quando sob a soleira, parou, virou-se e completou.

– Felizes os que possuem suficiente tempo ocioso pra trabalhar. A mim resta somente dedicar-me à arte, ao ofício de criar. Agora vá!

E retirou-se.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Amém!


Sentença: suicídio.


E como não foi espantoso ler isso! É verdade, não com tais palavras, mas é isso o que ele diz, Borges diz: num dos textos de “História Universal da Infâmia”, de título “O descortês mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké”, lá fala o porteño de um guerreiro condenado pelo assassinato de um par. Ele era samurai, e pros arautos da honra trajando armaduras nada existe de mais natural que o cumprimento sereno de sua pena, sem as tentativas, corriqueiras no ocidente, de ludibriar sua sorte traçada. Desse jeito, porém, assim é demais! Samurais à parte – que me cortem trinta cabeças se eu estiver errado! – como é possível condenar alguém ao próprio suicídio?!

Nenhuma criança gosta de ficar sem comer doces ou brincar por uma semana – mas pais e mães têm força suficiente a fim de se impor. Nenhum criminoso deve querer ter sua liberdade – menos ainda a vida! – restringida por um ato cometido, e lá vem o Estado fazendo pouco caso do que ele quer ou deixa de querer. Afinal, se a pena é desejada, que sentido há na sua existência? Têm casos em que alguém afirma a vontade de ser punido, por reconhecer seu ato como vil a ponto de merecer a sanção. Mas quem pode falar em autonomia com uma tal carga de peso sobre a consciência liderando o processo?! Não, a pena ainda é uma imposição externa, alheia a vontade do condenado. E, de qualquer forma, o caso desse samurai não se encaixa em nenhum desses padrões.

O guerreiro borgiano, quando recorre ao tribunal, não o faz a fim de ser punido. Ele não se acusa como culpado; porém, como tão honrado, admite seus atos, admite a morte do homem e sua autoria, deixando a cabo dos árbitros que lhe imputem culpa ou o absolvam. Não lhe cabe declarar se merece ser punido: a sanção continua sendo externa... E ainda assim, aceita, resignadamente, a pena de suicídio!

Ser condenado ao suicídio significa, no entanto, que o criminoso aceita a vontade de se matar. Poderia se pensar em apenas substituir, no caso, o peso na consciência, pelo respeito à sentença proclamada – assim, sim, poderia se enxergar um caractere externo pro cumprimento da pena. Mas até quem deseja a punição em razão de consciência pesada se entrega às autoridades pra que se façam cumprir as sanções. O paradoxo borgiano, porém, apresenta – com a normalidade de um café acompanhado de bolo de rolo no fim da tarde – as autoridades entregando nas mãos do condenado a possibilidade de se matar enquanto o fazem crer que ele, de fato, deseja a própria morte.

Não sei se porque nasci no ocidente, mas a pena de suicídio me parece um (muito) tanto quanto absurda. Imagine-se: Código Penal, art. 121 – Matar alguém. Pena: suicídio! Talvez o pensamento do ocidente judaico-cristão, tendo a vida por fiel da balança, princípio e fim de tudo – abstraindo-se isso das palavras de Jesus às de Hobbes –, como o bem mais precioso que há, ignore a possibilidade de valores diversos, como honra, respeito ou lá o que seja. Por isso o suicídio soa como uma condenação das mais estranhas: não se trata simplesmente de levar uma vida ao fim, mas de viciar a vontade do condenado, de obrigá-lo à perda do que nele restaria de altivo e digno, de lhe furtar o desejo de proteger a própria vida... Assim, claro, em se olhando de Moscou pra estas bandas de cá, pois, pras de lá, perder a dignidade seria não querer se matar quando ao suicídio condenado!

(Ninguém suicida ninguém senão si mesmo/a. Por essa razão, que tal uma campanha pela despronominalização do verbo “suicidar”? Afinal, se alguém diz “vou suicidar”, todos sabem quem estará morto no final, sem qualquer necessidade de completar com “vou suicidar-me”! Pior, ainda, se se encaixa a danada da mesóclise com um sonoro, pedante e erudito “suicidar-me-ei”! De um jeito ou de outro, no fim, com um mínimo de competência, ele/a estará bem morto/a.)

E não obstante esses parênteses, aparece um tribunal condenando um samurai ao suicídio. No entanto, apenas o réu pode suicidar (e não “suicidar-se”). Uma vez que se deixa seu cumprimento ao bel prazer do condenado, como, em última instância, se poderia ter certeza da efetivação da pena?! Na verdade, não se pode. A não ser num caso específico:

Às tantas, um grupo de samurais entra na casa de um guerreiro pra “fazer justiça” trazendo-lhe a morte. “Trazer-lhe a morte” porque, ao alcançá-lo em seu esconderijo, todos abaixam as espadas e pedem, imploram-lhe – de joelhos! – pra que suicide. Ele, no entanto, recusa continuamente até que, pros algozes, sua morte se torna mais interessante que o cumprimento dos rituais e os guerreiros o matam com a violência certeira de suas armas.

Suicídio por suicídio, do Fogo ao Sol Nascente, quando não há mais instâncias a que recorrer, sempre vai existir o bom e velho fio da espada pra fazer as honras da casa.